O kirchnerismo chutou o balde na Argentina, depois da derrota do governo nas PASO (Primárias Abertas Abertas Simultâneas e Obrigatórias), realizadas no domingo (12). Os candidatos da Frente de Todos, coalizão de centro-esquerda, perderam em 18 dos 24 distritos do país, inclusive na província de Buenos Aires, onde tradicionalmente a esquerda e a centro esquerda são fortes.
Foi um golpe de misericórdia na frágil aliança entre o presidente Alberto Fernández e a vice, a ex-presidente Cristina Kirchner. Desde a campanha eleitoral, vigorava uma tensão latente entre os dois lados. Para a centro-esquerda derrotar o presidente Mauricio Macri no pleito, foi necessário um acordo de ocasião. Fernández, mais moderado, precisava do kirchnerismo, seu populismo e penetração nas massas. Cristina, com forte rejeição, só conseguiria voltar ao poder poupando seu lado mais radical, aceitando seu ex-chefe de Gabinete no posto principal e de certa forma contendo seus apoiadores, normalmente mais à esquerda do que as posições de Fernández.
Mas o mal-estar era visível desde o início na relação entre os dois.
A derrota do domingo (12) foi a gota d'água. Fernández disse que havia cometido erros e prometeu corrigir a rota. O país, imerso em crise econômica desde antes da pandemia, só viu aumentar o rombo com o que chegou a ser o mais longo lockdown do mundo.
A vacinação contra a covid-19 até não vai tão mal - volta e meia é superior aos índices do Brasil, mas o governo apostou em um imunizante que não pegou no Ocidente (por diferentes motivos): a vacina russa Sputnik V. O registro de novos casos e mortes está relativamente controlado, mas a economia vai de mal a pior. A inflação está em 50% ao ano.
Após as Paso, o grupo kirchnerista, liderado pelo La Campora, integrada por jovens apoiadores de Cristina, iniciou um jogo de pressão contra alguns dos ministros do governo, entre eles o chefe de Gabinete, Santiago Cafiero, e o titular da pasta da Economia, Martín Guzmán, que incorporou a persona de responsável por todos os problemas econômicos dos últimos meses.
Nas últimas horas, cinco ministros, todos da ala kirchnerista, colocaram seus cargos à disposição - mas Fernández não aceitou a saída. Nesta quinta-feira (16), veio a público um áudio no qual a deputada Fernanda Vallejos fez um dos mais duros ataques ao presidente, vindo da base do governo.
- Todos esperávamos que o doente Alberto Fernández, o ocupante Alberto Fernández, na segunda-feira, às 8h, estivesse dando uma entrevista coletiva com a renúncia de todos sobre a mesa e não que dissesse que havia escutado a mensagem das urnas, como fez, de forma hipócrita. Se vê que, além de cego, é surdo porque jamais escutou nada - afirmou.
O termo "ocupa" (em espanhol) foi pesado, porque é usado para alguém que ocupa, toma de assalto, de forma ilegítima, o poder.
- O presidente está entrincheirado na Casa de governo. É um ocupante porque não tem nem votos nem legitimidade.
Está claro o conflito interno entre as forças de apoio a Fernández, o poderoso grupo de Cristina e um terceiro, reunido em torno do presidente da Câmara, Sérgio Massa. E uma tentativa de maior protagonismo de Cristina, que busca maior protagonismo no governo e a implementação de políticas públicas mais alinhadas a seus dois mandatos.
O rearranjo de alianças deve determinar os próximos passos do governo. Mas, tudo indica, esse é só o primeiro capítulo da novela que está começando. Ou recomeçando.