No governo Donald Trump, a agenda externa dos Estados Unidos migrou da Guerra ao Terror para a contenção da China. Mas nem por isso o Oriente Médio deixou de ser um dos principais campo de interesses estratégicos americanos.
Prova disso é a morte de Mohsen Fakhrizadeh, principal cientista nuclear iraniano vítima de um ataque com carro-bomba seguido de tiroteio na sexta-feira (27). A cena tem todos os ingredientes para bagunçar as intenções de Joe Biden para o Irã.
Tudo aponta para uma ação do Mossad, serviço de inteligência israelense: pelos interesses em jogo, modus operandi e brevê de Trump em apoiar a eliminação de um inimigo no epílogo de seu governo. A morte de Fakhrizadeh tem o mesmo peso da eliminação do major-general iraniano Qassim Suleimani, chefe da força de elite Al-Quds da Guarda Revolucionária no ano passado. Não ganhou a mesma visibilidade internacional porque, desta vez, a operação não foi uma ofensiva reconhecida pelos EUA, como a anterior, que tinha Trump na sala de situação da Casa Branca, o reconhecimento tácito de uma ação convencional e, até domingo (29), tanto Washington quanto Israel, preferiam o silêncio.
O episódio tem potencial para tragar a política externa americana de volta ao atoleiro do Oriente Médio. O Irã ameaça retaliar Israel pelo ataque, a Turquia, membro da Otan, mas cada vez mais virada para a Rússia, condena a ação e Vladimir Putin tem ganho terreno na região, desde que os Estados Unidos se retiraram da Síria e abandonaram o acordo nuclear com o Irã. Nos últimos meses, Israel vem se aproximando de países árabes que se opõem ao Irã, como a Arábia Saudita. Em setembro, o país assinou acordos de normalização de relações com Emirados Árabes Unidos e Bahrein.
A execução pode complicar os esforços do governo Biden com o Irã. O democrata planeja, ao que tudo indica, ressuscitar o acordo nuclear de 2015, se os iranianos concordarem em retornar aos limites acertados no pacto alinhavado na administração Barack Obama. Mas a morte de um herói como Fakhrizadeh alimenta a linha-dura iraniana, favorável ao endurecimento do discurso nacionalista e de reconstruir o estoque de combustível nuclear do qual o país abriu mão em 2015 - e reforçar a intenção dos aiatolás em finalizar a capacidade de dispor de armas atômicas.
No parlamento iranianos, os deputados assinaram um texto que pede vingança à morte do cientista e a aprovação de uma lei com a qual o Irã impediria a inspeção de suas instalações nucleares pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). As sanções impostas por Washington levaram a economia iraniana a uma dura recessão, e o país suspendeu o cumprimento da maioria de seus compromissos, mas não o acesso aos inspetores da AIEA, Biden afirmou que deseja o retorno dos Estados Unidos ao acordo de Viena. Mas terá pouco tempo entre sua posse (20 de janeiro) e as eleições presidenciais iranianas (18 de junho). Os conservadores são favoritos nas eleições após sua grande vitória nas legislativas de fevereiro, derrotando a aliança de moderados e reformistas que apoiam Hasan Rohani.