- Estamos prontos para o pior - disse-me Sergio Vieira de Mello, em uma de suas últimas entrevistas.
Vaidoso, ele gostava dos microfones, mas não costumava se demorar muito nas respostas. Era objetivo. Suas entrevistas exclusivas, como aquela, por telefone, prestes a embarcar para Bagdá, não demoravam mais do que 15 minutos. Eu sabia disso. Já o havia entrevistado várias vezes no Timor Leste, em Kosovo e em Genebra. Era educado e atencioso com o interlocutor, mas, como costumava ser sucinto nas respostas, obrigava os repórteres, principalmente os iniciantes como eu era, à época, a dispor de antemão de uma longa lista de perguntas.
Naquela conversa, por telefone, Sergio parecia antever a morte que o alcançaria no pior atentado da história contra as Nações Unidas, em 19 de agosto de 2003. Mas, ao dizer que estava pronto para o pior, não preocupava-se com os riscos que encontraria em um país devastado pela ocupação americana, em guerra civil e assolado pelo terrorismo da rede de Osama bin Laden, a Al-Qaeda em franco processo de transformação no que viria a ser o grupo Estado Islâmico. Sergio temia pelos milhões de refugiados que o conflito poderia provocar - e provocou.
É esse lado humanista e social da personalidade do diplomata que serviu por mais de 30 anos nas Nações Unidas que aflora no filme Sérgio, do diretor Greg Barker, com Wagner Moura no papel do brasileiro, disponível na Netflix. Nascido no Rio de Janeiro, mas cidadão do mundo desde a infância por conta da carreira do pai, também diplomata, Sergio estudou Filosofia na Sorbonne, em Paris, morava em Genebra, mas sentia-se mais à vontade em missões no Sudão, em Bangladesh, Moçambique, Líbano e Kosovo. Preferia o front aos acarpetados corredores da diplomacia mundial. Era no contato com o sofrimento das pessoas, vítimas fortuitas das macrodecisões da política internacional, que ele retirava a seiva que alimentava seus pensamentos e palavras na hora de sentar-se à mesa dos palácios, com ditadores, ou ao pé de uma árvore com chefes guerrilheiros para costurar a paz.
Antes de encarar sua missão mais desafiadora e depois da qual provavelmente seria indicado para suceder Kofi Annan como secretário-geral da ONU, espécie de presidente do mundo, Sergio dedicou-se por longo tempo a chefiar o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), órgão da entidade internacional que se preocupa com as levas de seres humanos deslocados por conflitos. No Camboja (1992-1993), ganhou fama de conciliador, quando fechou um improvável acordo com a guerrilha do Khmer Vermelho, que permitiu a repatriação de 350 mil refugiados do Vietnã. Mas o trabalho de sua vida foi no Timor Leste, minúsculo território da Indonésia que, logo após votar pela independência, foi devastado pelo poder central, de Jacarta. Sergio foi enviado para consolidar a independência, apaziguar ânimos e criar estruturas básicas de um país. Chegou com plenos poderes. Como administrador do território, poderia ter governado sozinho, mas, hábil, sensitivo e inteligente, criou logo um conselho para trazer os timorenses para o seu lado. Saiu de lá, em 2002, amado pelo povo, reconhecido nos meios políticos internacionais como construtor de nações, e, nas palavras do Prêmio Nobel da Paz em 1996, o jurista timorense José Ramos Horta, “um Pelé da diplomacia”. Concluído o trabalho na Ásia, Sergio foi nomeado alto comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos. Foi quando veio um dos tantos convites para Bagdá.
O filme de Barker, um admirador da trajetória de Sergio, foca no romance do diplomata com a colega argentina Carolina Larriera (Ana de Armas). A geopolítica de seu trabalho surge como pano de fundo. O atoleiro do Iraque era um desafio hercúleo para as Nações Unidas, que se opuseram à guerra, mas foram atropelas pela Casa Branca. Depois destruição, a entidade era chamada a reconstruir. Mas havia um conflito de interesses entre a administração americana, exercida por Paul Bremer, enviado de George W. Bush, e a autonomia da instituição ONU, mais preocupada com os direitos humanos dos iraquianos cansados do conflito.
Sergio era representante do secretário-geral Kofi Annan e só aceitou o desafio depois que o próprio Bush lhe pediu. Mas, ao chegar a Bagdá, percebeu como os americanos haviam rapidamente se transformado de um exército libertador do jugo de Saddam Hussein em uma tropa de ocupação, que impunha a lei pela metralhadora e com tortura. As dificuldades políticas, o aprofundamento das rusgas entre Bremer e Sergio e a realidade do terreno que passam à margem do filme podem ser complementadas por outra obra do mesmo diretor, um documentário com o mesmo título, Sergio, lançado em 2009 e também disponível na Netflix. É mais duro, cruel e realista, mas vale a pena.
Sergio era um dos brasileiros mais conhecidos do mundo. Mas aqui, aqui dentro, no Brasil poucos sabiam quem ele era. Mesmo depois de sua morte no Iraque, seu nome ainda é desconhecido da maioria dos brasileiros. O filme Sergio (2020) e o documentário Sergio (2009) cumprem bem o papel de mostrar um a importância do diálogo, em um momento de polarizações, e a necessidade de liderança pela conciliação em dias em que o país - e o mundo - carecem de líderes, diante de mais um capítulo desafiador da história da humanidade.