Durante décadas, o PT lastreou sua relação com a sociedade na organização de movimentos ditos sociais nos quais se arregimentavam grupos de interesse. Cada grupo escalava seu antagonista, fosse ele legal, institucional ou coletivo. Surgiram, assim, centenas de redes, plataformas, associações, uniões, fóruns, frentes que se espalhavam e se reproduziam por divisão celular (mitose ou meiose), mas sempre mantendo as características ideológicas da célula-mãe. Muitos desses corpos sociais são utilizados pelo partido como massa de manobra para manifestos, mobilizações e, em incontáveis casos, para prática de invasões, depredações e perturbações da ordem pública. Um número considerável deles vive de recursos públicos.
Sempre que fatos dessa natureza aconteciam, a ação da autoridade pública e a reação política eram denunciadas como criminalização dos movimentos sociais. De tanto ouvi-la, memorizamos a expressão. Acusar seus legionários de fazerem aquilo que à vista de todos faziam era um mau hábito da "zelite". Era algo que feria a sensibilidade petista. Na essência das ações violentas e na respectiva proteção partidária, fica perfeitamente identificável a genética revolucionária da célula-mãe: a lei só serve quando útil à causa. Fora disso, integra uma ordem burguesa que pode e deve ser demolida.
É nesse contexto e só nele que se pode compreender a conduta dos parlamentares que têm composto, na Câmara e no Senado, a agitada tropa de choque do governo substituído. A insensibilidade e a tolerância que marcam seu longo convívio com a organização criminosa instalada no coração do governo não combinam com visível sofrimento físico que lhes causa o menor contraditório sobre temas regimentais. Há aí uma exasperante contradição! É como se não houvesse mal algum em infringir gravemente a lei penal, a responsabilidade fiscal, a ordem pública, ou obstar a ação da Justiça. Mas ai de quem não leve a sério um judicioso despacho do ilustre deputado Waldir Maranhão! Dedos em riste e tumultos no plenário denunciarão a iletrada obtusidade dos que divirjam.
É uma legítima questão de ordem: a revolução não pode parar! Faça-se o diabo, faça-se até o inimaginável de que se seja capaz, mas a revolução não pode parar. Armaram-se nesse submundo ideológico os crimes de responsabilidade cometidos pela presidente. A esquerda que só anda de jatinho e acusa a "zelite" de não gostar de pobre em avião de carreira vê suas lesões ao Estado de direito como instrumentos legítimos a serviço da mais nobre das causas. Os que jamais mencionam a crise em que enfiaram o país construíram e habitam mansões nos aprazíveis loteamentos da utopia. Ali, triplex de cobertura na beira da praia de Guarujá é coisa de Minha Casa Minha Vida.
Sou um dos milhões que saíram às ruas. Participei de todas as mobilizações desde novembro de 2014, quando já era nítido o estelionato eleitoral. Sei que anteontem teria sido uma data como outra qualquer não fora um ano e meio de clamor popular por impeachment e não fora o Dr. Sergio Moro. Assim nasceram as dezenas de requerimentos pedindo a abertura do processo de acusação à presidente. Ao contrário do que o ex-governo tenta impingir aos desinformados, é Moro que nos representa. Nunca Eduardo Cunha! Não esqueçamos: há dois meses, em 13 de março, os poderes de Estado assistiam pela TV a manifestações de 6 milhões de pessoas no país. E então se decidiram. E então se mexeram. O crime de responsabilidade já integrava o mundo dos fatos, mas a decisão política de acusá-lo firmou-se naquele dia, no parlamento, e ouso dizê-lo, também no Supremo.
Serviria muito bem a esta coluna um encerramento conclamando à unidade e à pacificação pelo bem do país. Mas como crer nisso? Infelizmente, custe o que custar à nação, a oposição que nasceu anteontem já queima pneus e fará o possível para que o novo governo fracasse. Não tentou o impeachment de todos os governos aos quais se opôs? Quem, no poder, furou o casco do Brasil por dentro já anunciou, na Zero Hora desta quinta-feira, que o fará por fora. Tivemos a mais onerosa lição de que o presidencialismo é uma bomba sempre prestes a explodir. Chegou a hora de desarmá-la.
Artigo
A criminalização de um crime
Escritor
Percival Puggina
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