O mais difícil tem sido dizer não. Jonatan Duarte lida com famílias arrasadas, gente chorando, pessoas tremendo – e, até hoje, nunca negou atenção aos enlutados: sempre garantiu um destino digno ao corpo de quem morreu. Só que isso mudou nas últimas semanas.
– Imagina receber uma família que, antes de nós, já visitou outras três, quatro funerárias. As pessoas chegam aqui implorando, dizem "por favor, me ajuda", e eu não consigo ajudar. É uma sensação horrível – lamenta Jonatan, 36 anos, gerente operacional de uma funerária na Avenida Oscar Pereira, em Porto Alegre.
Há 12 anos trabalhando no ramo, nunca ele viu tanta gente morrer ao mesmo tempo. Se antes, em um intervalo de 15 dias, a média de atendimentos variava entre 20 e 25, agora esse número triplicou: só nas duas primeiras semanas de março, foram 62 clientes – sem contar os que deixaram o local sem ser atendidos.
– Não tem como dar conta, somos só cinco pessoas. Estamos ignorando lei trabalhista, horário de almoço, mas não por causa da diretoria, que nos garante todos os diretos. A decisão é nossa: como vou parar para comer sabendo que alguém precisa enterrar um pai ou um filho? – pergunta Jonatan, que nos últimos dias precisou comprar seis vezes mais caixões do que o normal.
Aliás, é na sala dele que os clientes se dão conta de algo terrível: nunca mais vão olhar para a pessoa que amavam.
– É ali que cai a ficha, quando eu digo que o caixão é fechado. Já pensou? Se despedir da tua mãe sem poder ver ou tocar nela... Não gosto nem de pensar.
Nós somos a lembrança dos dias mais dolorosos que uma pessoa vai ter. É muito triste não poder ajudar em uma despedida.
JONATAN DUARTE
Agente funerário
Na equipe de Jonatan, todos já tiveram covid. Primeiro, porque os familiares dos mortos, quando procuram a funerária, frequentemente estão infectados. E segundo porque, no necrotério, o contato com os corpos é inevitável: mesmo que esteja coberto por um lençol, ou acomodado em um saco plástico, o cadáver precisa ser checado.
– Como é muita gente que morreu, não dá para confiar só na etiqueta que identifica o corpo. Nosso cuidado é redobrado, usamos todos os equipamentos de proteção, mas o vírus pegou todo mundo – conta ele.
O mais difícil, no entanto, ainda é dizer não. Negar atendimento a famílias enlutadas, segundo Jonatan, vai contra a própria missão de um agente funerário:
– Nós somos a lembrança dos dias mais dolorosos que uma pessoa vai ter. É muito triste não poder ajudar em uma despedida.
Entidades que representam funerárias enviam esclarecimento à coluna
Após a publicação do texto acima, a Associação das Empresas Funerárias de Porto Alegre (Aefpoa) e o Sindicato dos Estabelecimentos Funerários do Rio Grande do Sul (Sesf-RS) enviaram à coluna uma nota conjunta para esclarecer questões que poderiam, segundo as entidades, provocar incertezas na população sobre o serviço funerário. Leia a íntegra:
"A Associação das Empresas Funerárias de Porto Alegre (Aefpoa), que reúne em seu quadro associativo as funerárias da Capital, e o Sindicato dos Estabelecimentos Funerários do Rio Grande do Sul (Sesf-RS), que representa as empresas do setor no Estado, vêm a público manifestar-se sobre a matéria veiculada na ZH de hoje, na coluna de Paulo Germano, produzida a partir de entrevista com o agente funerário de uma empresa da Capital. A seguir, as considerações:
1) Não há represamento no atendimento das funerárias às famílias enlutadas. Porto Alegre conta com 23 empresas habilitadas e com infraestrutura de atendimento adequada. Tanto isso procede que não há registro de usuário do Sistema Funerário Municipal que tenha ficado sem assistência.
2) Se, eventualmente, uma empresa esteja com toda sua equipe comprometida em atendimentos simultâneos, a família enlutada tem outras 22 opções na Capital para a contratação de serviços funerários.
3) Tanto a Aefpoa quanto o Sesf-RS orientam suas associadas/representadas a seguirem à risca a legislação trabalhista e os protocolos sanitários para a prestação do serviço funerário.
4) Ainda que se tenha alta no número de óbitos, as funerárias estão com as equipes mobilizadas e treinadas para atender com eficiência. O que vale ressaltar é a necessidade de imunização imediata dos trabalhadores da categoria em Porto Alegre, o que até o momento não ocorreu, apesar de prestarem um serviço essencial e constarem no grupo de prioritários para vacinação.
Certas da pertinência de suas considerações, as duas entidades se colocam à disposição para esclarecimentos adicionais.
Atenciosamente,
Ary Bortolotto
Presidente da Aefpoa
Valdir Gomes Machado
Presidente do Sesf-RS"