A autoconfiança do legislador brasileiro, queria eu ter metade dela. O sujeito inventa uma lei para regrar a conduta de milhões de pessoas e, ainda que precise examinar questões estritamente técnicas, ele não escuta ninguém que entende do assunto. Ele faz a lei com base no que ele acha, é impressionante.
Esse caso da liberação da bebida alcoólica nos estádios, por exemplo. O deputado estadual Ciro Simoni (PDT), um dos autores da proposta aprovada na Assembleia, diz que a redução da violência no futebol nada teve a ver com a proibição do álcool.
– Para mim, essa redução foi motivada pelo grande trabalho realizado pelo Ministério Público, pelo Judiciário e pelos clubes – disse ele a GaúchaZH.
Só que nem essa admiração do deputado pelas instituições foi suficiente para que ele as ouvisse. Porque tanto o Ministério Público quanto o Judiciário são contra o seu projeto. Que também é reprovado pela Brigada Militar, pela Associação Brasileira de Estudos do Álcool e pela imensa maioria dos especialistas que investigam o fenômeno.
Um desses estudiosos, o sociólogo Mauricio Murad, autor do livro A Violência no Futebol: Novas Pesquisas, Novas Ideias, Novas Propostas, informa que o número de confrontos violentos, em um único ano, despencou até 63% em Estados onde o álcool foi banido das partidas.
Mas Ciro Simoni insiste em se basear no que ele acha: como a bebida alcoólica segue à venda no entorno dos estádios, não adianta nada proibi-la do lado de dentro, acredita o deputado. Afinal, quem quiser ficar bêbado, fica bêbado antes.
– Só que o grande problema é o final do jogo. O ideal seria ninguém ficar bêbado em momento algum, mas, se o torcedor está bêbado no segundo tempo, quando já ouviu provocações, quando seu time está perdendo, quando o juiz já fez bobagem, aí a possibilidade de conflito é muito maior – avalia o advogado Alberto Kopittke, especialista e consultor em segurança pública.
Quer dizer: quem conhece o assunto defende a proibição da bebida alcoólica inclusive no entorno dos estádios. Enquanto isso não ocorre, liberar a venda do lado de dentro é como resolver uma infestação de cupins tacando fogo na casa.
O juiz Marco Aurélio Martins Xavier, do Juizado do Torcedor de Porto Alegre – talvez a pessoa que mais devesse ter sido ouvida antes da votação desse projeto – lembra que a maior presença de mulheres e famílias nos jogos é reflexo também do veto ao álcool. Porque o ambiente se tornou controlado, apaziguado. E não há qualquer atentado às liberdades individuais nisso, pelo contrário: em eventos de grandes multidões – não importa se privado ou não –, a regulação do Estado é fundamental inclusive para garantir os direitos do próprio consumidor.
Em jogos no Interior, o comércio de bebida alcoólica é defensável e poderia ser debatido. Só que os deputados preferiram não debater nada.
No caso da boate Kiss, por exemplo, o poder público precisava ser responsabilizado porque sua fiscalização falhou. No caso dos estádios, o poder público precisa fazer uma escolha: que tipo de torcedor vai priorizar? Aquele que finalmente consegue ir ao jogo com a família, com a namorada, com os filhos, ou aquele que precisa beber a qualquer custo? (Lembrando que hoje, com todos os jogos televisionados, ele pode tomar quantas quiser em casa.)
Na justificativa do projeto aprovado na Assembleia – que ainda precisa ser sancionado ou vetado pelo governador –, Ciro Simoni e o colega Gilmar Sossella, também do PDT, apontam a Copa do Mundo como um belo exemplo de futebol com bebida. Chega a dar preguiça dizer que a rivalidade local, razão maior das pancadarias, jamais seria um elemento preocupante em Coreia do Sul x Argélia.
Mas existe um único argumento razoável para manter o comércio de bebida alcoólica nos estádios: quando o contexto é o Interior. Lá, de fato, a dinâmica é outra – há cidades gaúchas com tradição em futebol que jamais registraram casos de violência no futebol. Porque as multidões são menores, não há gangues em torcidas organizadas e até a rivalidade tem um espírito mais comunitário.
O sociólogo Mauricio Murad sugere o que já ocorre na Europa. Na legislação de lá, as forças policiais podem autorizar ou vetar a venda de álcool em jogos no Interior. Seria ótimo se os deputados tivessem debatido essa ideia, mas eles são tão autoconfiantes que se lixaram para quem entende do assunto.