Depois de ser acusada de machismo, apanhar, pedir desculpas, apanhar mais ainda, suspender o lançamento de um disco e seguir apanhando até cancelar seis shows em quatro Estados, a banda Apanhador Só divulgou na semana passada uma nota perturbadora.
Perturbadora para mim, pelo menos.
Primeiro, bem, você deve lembrar: há 15 dias, a ex-mulher do guitarrista denunciou, em um post no Facebook, uma suposta contradição entre o nome da música Linda, Louca e Livre – que se assemelha a um bordão do feminismo latino-americano – e a conduta "desleal", "cruel" e "covarde" do rapaz enquanto fora seu marido. Quer dizer: não poderia um machista bancar o feminista.
Depois de reportagens em quase todos os grandes jornais do país, a nota da Apanhador Só esclareceu que a banda nem conhecia o tal bordão. Mas que, mesmo assim, se dispunha a trocar o título da música porque, afinal, o grupo sempre esteve aberto "a rever e reinventar" sua obra "à medida que vão surgindo questionamentos a respeito de lógicas opressoras" que antes não eram percebidas.
Senti arrepios lendo esse troço.
Como exemplo de disposição para revisar suas letras, a nota da Apanhador Só citava a ótima música Líquido Preto, cujos primeiros versos diziam: "Pau no cu de quem não quer / Dividir esse refri com a minha mulher". Alguns fãs consideraram o trecho homofóbico. No ano passado, "pau no cu" virou "pau no Cunha", em alusão ao ex-deputado Eduardo Cunha, e outra parte da música, que falava em "gorda", foi trocada por "gordo", depois por "diabético", tudo em nome do politicamente correto.
É verdade que esse troca-troca em Líquido Preto também incorporava uma postura artística da Apanhador Só – uma das bandas gaúchas mais criativas da última década –, que costumava pedir à plateia sugestões para alterar suas letras. Mas, se havia algo de simpático nisso, também havia de sintomático: já passou dos limites o cerceamento arbitrário que esse novo ativismo consegue impor até sobre a arte.
Agora, a banda se vê prestes a mudar o nome de uma música porque essa música lembra um refrão feminista que o grupo jamais tinha ouvido falar – como se o mérito da obra não fosse, justamente, provocar no ouvinte as interpretações mais imprevisíveis, inclusive sobre "pau no cu" ser ou não ser uma expressão homofóbica. A virtude maior em qualquer forma honesta de arte é suscitar uma discussão, e não evitar a discussão ao menor sinal de que ela apareça.
Não há honestidade na arte sem autenticidade. Recentemente, Chico Buarque envolveu-se em uma polêmica estúpida ao ser chamado de machista devido à letra de sua nova música: "Quando teu coração suplicar / Ou quando teu capricho exigir / Largo mulher e filhos / E de joelhos vou te seguir". Ora, é a legitimidade das interpretações sobre essa música que precisa ser debatida, e não a legitimidade da música em si.
Como bem lembrou o professor Sérgio Freire, que leciona Linguística na Universidade Federal do Amazonas, o artista não precisa, não pode, não deve se preocupar com discursos corretos – primeiro, porque coloca em risco sua autenticidade; segundo, porque não adianta. A arte, quando circula no público, não é mais do artista, ela está fora do domínio dele, ela passa a atuar sobre a intimidade mental e emocional de quem a consome, não mais de quem a concebe.
Outras crônicas de Paulo Germano:
O prazer de se irritar com uma idiotice qualquer
Por que ninguém mais bate panela
Beijar um homem na boca
A arte não tem que acompanhar seu tempo, não tem que ter regra, não tem que dizer o que os outros querem que diga.
Não faz muito, outra banda gaúcha, a Bidê ou Balde, teve uma música banida até dos próprios shows porque falava de um pai que sentia atração sexual pela filha. É evidente que Carlinhos Carneiro nunca quis fazer amor com a filha. Sabe-se também que ele repudia incesto e pedofilia, mas, naquele momento, na hora da inspiração, sentiu a espontânea vontade de interpretar a mente de um pai atraído pela criança – assim como Chico sentiu vontade de interpretar a mente de um adúltero apaixonado pela amante.
Em um mundo em que tudo parece decidido por oprimidos ou opressores, fascistas ou comunistas, machistas ou feministas, direitistas ou esquerdistas, o mínimo que espero de um artista é que ele ouça a si mesmo. Até porque, em boa parte, dependemos dos artistas para ter contato com visões diferentes das obviedades que nos estapeiam todo dia.
Apanhador Só, eu adoro a música de vocês. Por favor, não violentem essa obra "à medida que vão surgindo questionamentos a respeito de lógicas opressoras". Às favas com as lógicas opressoras.