O anúncio de que os Estados Unidos vão mesmo aplicar 104% de tarifa a todos os produtos chineses importados na primeira hora de quarta-feira (9) fez o dólar trafegar acima de R$ 6 por duas vezes. Uma foi perto das 14h, quando chegou a R$ 6,02. Outra ocorreu minutos antes do fechamento, chegando a R$ 6,05. Nas duas vezes, houve marcha à ré, e a moeda americana fechou em R$ 5,997, com alta de 1,46%.
O que no início da manhã havia parecido mudança de discurso voltou a ser pura irracionalidade. Tarifa de 104% é impraticável, que praticamente inviabiliza qualquer troca comercial.
E, para lembrar, a China não exporta apenas bugigangas para os EUA. Vêm de lá insumos para várias indústrias. Um dos exemplos que vêm sendo citados nos últimos dias é o de moda: há roupas que são "made in America", mas feitas com botões e zíperes chineses, entre outros componentes, alguns muito mais sofisticados.
Não por acaso, a maior queda nos mercados americanos do dia é da Nasdaq, a bolsa de tecnologia, que perdeu 2,15%. Os índices da bolsa de Nova York caíram 0,84% (DJIA, o mais tradicional) e 1,57% (S&P, o mais abrangente).
A pressão cambial é atribuída, em parte, à depreciação do yuan, moeda da China, frente ao dólar. Como o mercado brasileiro é líquido – é fácil de fazer e desafazer transações financeiras –, há intensa procura para compra, inclusive com objetivo de proteção, via mecanismos de hedge (operações que dão garantia a quem as faz de obter ganho igual ao cambial).
A tarifa de 104% para a China é resultado de uma taxa de 20% aplicada ainda em março, os 34% impostos em 2 de abril e mais 50% nesta terça-feira (7), como "castigo" pelo fato de o país ter retaliado os EUA com alíquota de 34% na entrada de importações americanas no país.
Os erros de Trump
1. Erro de diagnóstico: para Trump e sua turma de "terraplanistas econômicos", os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas americanos e são provocados por países "do mal". A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses déficits são provocados por... empresas americanas. É o caso de empresas como a Apple, que tem produção espalhada por todo o globo e assina iPhones e outros dispositivos com "Designed by Apple in California". O que tem mais valor, neste caso, é o trabalho intelectual embutido e remunerado na venda, não a mão de obra da montagem. Também é o caso de empresas como a Nike, com suas 71 fábricas no Vietnã. São empresas americanas como Apple e Nike que alimentam o déficit dos EUA com vários países, especialmente os que combinam mão de obra barata e de qualidade.
2. Erro de objetivo: em tese, a meta de Trump é forçar empresas americanas como Apple e Nike a levar essa produção descentralizada de volta aos Estados Unidos para fugir das tarifas punitivas impostas por ele. É um equívoco porque, primeiro, esse processo leva anos. É preciso construir unidades, comprar equipamentos. E se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação.
3. Erro de concepção: o tarifaço era aguardado ao menos desde a posse. Os mais atentos esperavam desde a eleição de Trump. Mas de empresas financeiras americanas como a Goldman Sachs a universidades de primeira linha como Yale, as projeções eram de tarifas de 13%, aumentos de 15 pontos percentuais, e iam até tarifas lineares de 25%, no pior dos casos. Todos subestimaram: as alíquotas chegaram a 50%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade desse tamanho de sobretaxa, só comparável com o final do século 18. Ou seja, há um século e um quarto. Tarifas mais alinhadas às projeções provocaram efeitos negativos – isso estava embutido nos estudos – mas não o derretimento de mercados que temos visto.
4. Erro de elaboração: como lida com tema tão sensível – o comércio do mundo todo – a definição das tarifas deveriam passar por estudo profundo sobre as causas dos déficits e os possíveis impactos, certo? Nada, o United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". Rendeu percentuais tão absurdos como os 50% para a ilha Saint-Pierre e Miquelon, um arquipélago francês ao sul da ilha canadense de Terra Nova que praticamente não teve comércio com os EUA até exportar US$ 3,5 milhões em 2024. O fato de outra ilha, povoada apenas por pinguins e focas, ter sido taxada com os 10% da "tarifa padrão" evidencia o grau de amadorismo da medida.
5. Erro de aplicação: o anúncio foi feito no dia 2 de abril e as tarifas padrão, de 10%, começaram a incidir no dia 5. No caso das punitivas, entram em vigor na quarta-feira (9). Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior. No caso das mais elevadas, então, é um absurdo completo, no mundo dos negócios, que uma mudança desse porte ocorra em tão curto prazo. Imagine: é como se um aumento de imposto no Brasil fosse anunciado em uma quarta e vigorasse já no sábado. Ia ter manifestação nas ruas.
6. Erro de avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota de 34%. Mas o gigante asiático retaliou e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar". Espantou ainda mais quando ameaçou o país com uma tarifa extra de 50% – o que significaria 84% para todos os produtos e acima de 100% para alguns específicos – caso não retirassem a represália. Ao dobrar a aposta e projetar uma situação absurda, ressaltou o caráter de blefe da manifestação.
Há outros equívocos monumentais, mas esses são os maiores e mais fáceis de entender. Por ora, a coluna para aqui, esperando que as queixas dos amigos de Trump em Wall Street o ajudem a recuperar algum senso de realidade.