
Sem saber as regras do jogo, o mundo assiste atônito a uma disputa com alto potencial destrutivo de riqueza. A guerra comercial deflagrada por Donald Trump ainda afeta ao menos 184 países – descontando a ilha habitada apenas por pinguins e focas –mas se focou sobre a China com o adiamento de efeitos para além das tarifas de 10% por 90 dias.
Também não se sabe com exatidão qual será o prêmio do vencedor, mas não parece pequeno: é algo como comandar os rumos da humanidade. Envolve troca de cartas (10%, 25%, 125%), blefes (tarifas sobre chips) e um jogador que paga para ver (retaliação da China até 125%), então se parece com um pôquer em que cada ás vale um quarto do PIB do planeta.
Neste momento, a tentativa de todos os envolvidos é entender quem tem a melhor mão: EUA ou China, Trump ou Xi Jinping, a maior economia do mundo ou a segunda. Não é uma tarefa simples, dadas as características pessoais, culturais e econômicas dos competidores.
O retrospecto favorece a maior economia do planeta, cuja concentração de riqueza só cresce. Os EUA já venceram a maior de todas as recessões globais, nos anos 1930, e foram bem-sucedidos em evitar a ascensão de várias potências, de Japão à União Soviética – país que não está entre os 185 (voltaram os pinguins...) afetados pelas tarifas de 10%.
O PIB da Califórnia, berço de big techs, foi de US$ 4,1 trilhões em 2024. Se fosse um país, seria a quarta maior do mundo, depois do Japão e antes da Alemanha. As duas maiores bolsas de valores do mundo estão nos EUA: a de Nova York (Nyse) e a Nasdaq. A moeda americana ainda domina todo o sistema de trocas do planeta, embora esteja em xeque.
O tempo beneficia o adversário, que não tem a pressa de Trump para cessar os prejuízos autoinflingidos. A China tem o trunfo da espera sem desespero, porque o país é mais autossuficiente do que os EUA. E mais: como o adversário disparou para todos os lados, também transformou o temido gigantes asiático em potencial novo aliado.
Um movimento testemunhado pela coluna ilustra essa mudança. Em setembro do ano passado, o foco da União Europeia (UE) era oferecer uma alternativa ao plano de expansão global da China, especialmente ao Cinturão e Rota da Seda. Em sete meses, o antagonista virou potencial aliado. Na semana passada, o embaixador chinês na Espanha afirmou querer "parceria" com a UE contra o "abuso" dos EUA.
E nesta quarta-feira (15), Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia (espécie de primeira-ministra do bloco), fez uma frase de impacto sobre a atual relação com os EUA:
— O Ocidente como o conhecíamos não existe mais.
E acrescentou:
— O lado bom disso é que, agora, tenho diversas conversas com chefes de Estado e governantes de todo o planeta, que querem trabalhar conosco nessa nova ordem... todos estão pedindo mais trocas com a Europa, não somente no campo econômico.
Nessa disputa cheia de ardis e métodos duvidosos, no minuto seguinte nada ainda é o que parecia no anterior. Mas se vale a máxima de "nunca apostar contra os EUA", como na frase famosa de Warren Buffett, também vale a que ensina que "o inimigo do meu inimigo é meu amigo".
Os erros em cascata no tarifaço
1. De diagnóstico: para Trump, os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas. A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses resultados são provocados por... companhias americanas. A Apple tem produção espalhada por todo o globo e assina seus dispositivos com "Designed by Apple in California", assim como montadoras de carros e até de tênis, como a Nike e suas 71 unidades só no Vietnã.
2. De objetivo: em teoria, a meta é forçar empresas americanas – como Apple e Nike – a levar essa produção descentralizada de volta aos EUA para fugir das tarifas punitivas. Esse processo leva anos: é preciso construir unidades, comprar equipamentos. Se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação. Outra expectativa é arrecadar mais para financiar cortes de impostos que Trump planeja fazer sem impactar ainda mais a já pesada dívida dos EUA. Mas não são governos que pagam tarifas. Nem os odiados estrangeiros. Como as tarifas são repassadas aos preços, quem vai bancar o tarifaço será o americano que comprar produtos importados.
3. De concepção: o tarifaço era aguardado. Gigantes financeiras, como Goldman Sachs e universidades de primeira linha, como Yale, projetaram, na pior das hipóteses, tarifas lineares de 25%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade de sobretaxas de até 145%. Tarifas mais baixas provocariam efeitos negativos, mas não derretimento de mercados e perda de confiança nos Treasuries.
4. De elaboração: como era preciso fazer muitos cálculos, United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". A inclusão de uma ilha povoada apenas por pinguins e focas nos 10% da "tarifa padrão" reforça o grau de amadorismo.
5. De aplicação: o anúncio foi feito em 2 de abril. As tarifas padrão, de 10%, passaram a incidir já no dia 5 e as punitivas chegaram a entrar em vigor nesta quarta-feira (9) antes de serem suspensas. Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior.
6. De avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota que a essa altura soma inacreditáveis 145%. Mas o gigante asiático retaliou – com "gentileza", para até 125% – e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar". A OMC estima que essa soma inviabiliza 80% do comércio entre os dois países.