
Para países habituados a dificuldades cíclicas, como o Brasil, mais uma é quase normal. Menos normal é que uma muito séria, com direito a quedas históricas, tenha como "autor" o presidente dos Estados Unidos. E mais surpreendente do que ler, nos jornais americanos, que Trump "shot hiself on the foot" (atirou no próprio pé, como costumam fazer incontáveis líderes de países emergentes), é entender que a crise deflagrada seria evitável, por ser inútil.
Uma crise nos mercados, que se transmite para a economia "real" sob a forma de riqueza que murcha, é como acidente de avião: nunca é provocada por apenas um equívoco. A de 2008, por exemplo, começou com pirâmides de títulos podres e foi agravada por má avaliação do governo de George W. Bush.
A da pandemia foi inevitável e incontornável. A crise de Trump tem uma sucessão de falhas, todas com a mesma origem: o próprio presidente dos EUA. A coluna vai listar abaixo os mais clamorosos.
1. Erro de diagnóstico: para Trump e sua turma de "terraplanistas econômicos", os déficits comerciais dos EUA estão na raiz de todos os problemas americanos e são provocados por países "do mal". A coluna já detalhou que, em muitos casos, esses déficits são provocados por... empresas americanas. É o caso de empresas como a Apple, que tem produção espalhada por todo o globo e assina iPhones e outros dispositivos com "Designed by Apple in California". O que tem mais valor, neste caso, é o trabalho intelectual embutido e remunerado na venda, não a mão de obra da montagem. Também é o caso de empresas como a Nike, com suas 71 fábricas no Vietnã. São empresas americanas como Apple e Nike que alimentam o déficit dos EUA com vários países, especialmente os que combinam mão de obra barata e de qualidade.
2. Erro de objetivo: em tese, a meta de Trump é forçar empresas americanas como Apple e Nike a levar essa produção descentralizada de volta aos Estados Unidos para fugir das tarifas punitivas impostas por ele. É um equívoco porque, primeiro, esse processo leva anos. É preciso construir unidades, comprar equipamentos. E se der certo, vai dar muito errado: a corrida de volta para casa tende a provocar uma demanda difícil de atender, o que pressionaria a inflação já elevada pela entrada de produtos com maior tarifa de importação.
3. Erro de concepção: o tarifaço era aguardado ao menos desde a posse. Os mais atentos esperavam desde a eleição de Trump. Mas de empresas financeiras americanas como a Goldman Sachs a universidades de primeira linha como Yale, as projeções eram de tarifas de 13%, aumentos de 15 pontos percentuais, e iam até tarifas lineares de 25%, no pior dos casos. Todos subestimaram: as alíquotas chegaram a 50%. Engano de quem projetou? Não, de quem concebeu a possibilidade desse tamanho de sobretaxa, só comparável com o final do século 18. Ou seja, há um século e um quarto. Tarifas mais alinhadas às projeções provocaram efeitos negativos – isso estava embutido nos estudos – mas não o derretimento de mercados que temos visto.
4. Erro de elaboração: como lida com tema tão sensível – o comércio do mundo todo – a definição das tarifas deveriam passar por estudo profundo sobre as causas dos déficits e os possíveis impactos, certo? Nada, o United States Trade Representative (USTR, principal órgão de comércio exterior dos EUA) simplificou: dividiu o superávit comercial de cada país com os EUA pelo total das exportações dessa mesma nação. E dividiu outra vez por dois, para ser "gentil". Rendeu percentuais tão absurdos como os 50% para a ilha Saint-Pierre e Miquelon, um arquipélago francês ao sul da ilha canadense de Terra Nova que praticamente não teve comércio com os EUA até exportar US$ 3,5 milhões em 2024. O fato de outra ilha, povoada apenas por pinguins e focas, ter sido taxada com os 10% da "tarifa padrão" evidencia o grau de amadorismo da medida.
5. Erro de aplicação: o anúncio foi feito no dia 2 de abril e as tarifas padrão, de 10%, começaram a incidir no dia 5. No caso das punitivas, entram em vigor na quarta-feira (9). Se era para negociar, o prazo deveria ter sido maior. No caso das mais elevadas, então, é um absurdo completo, no mundo dos negócios, que uma mudança desse porte ocorra em tão curto prazo. Imagine: é como se um aumento de imposto no Brasil fosse anunciado em uma quarta e vigorasse já no sábado. Ia ter manifestação nas ruas.
6. Erro de avaliação: na Trumposfera, a China acataria sem chiar uma alíquota de 34%. Mas o gigante asiático retaliou e o presidente americano acusou o golpe, dizendo que o país oriental havia "entrado em pânico" e "não sabia jogar". Espantou ainda mais quando ameaçou o país com uma tarifa extra de 50% – o que significaria 84% para todos os produtos e acima de 100% para alguns específicos – caso não retirassem a represália. Ao dobrar a aposta e projetar uma situação absurda, ressaltou o caráter de blefe da manifestação.
Há outros equívocos monumentais, mas esses são os maiores e mais fáceis de entender. Por ora, a coluna para aqui, esperando que as queixas dos amigos de Trump em Wall Street o ajudem a recuperar algum senso de realidade.
Os impactos possíveis
Antes do anúncio oficial, bancos, universidades e órgãos de financiamento de exportações fizeram projeções sobre o impacto do tarifaço de Trump. Cada um adotou um cenário diferente para o aumento das alíquotas. A coluna está mantendo, no final dos textos sobre o tarifaço de Trump, os principais pontos, mas adverte: o anúncio, concordam os especialistas, foi pior do que o esperado e tornou os cenários traçados benignos frente ao potencial de prejuízos.
1. Goldman Sachs, uma das maiores instituições financeiras dos EUA: aumento na probabilidade de recessão de 20% para 45% (atualizado no dia 7 de abril), alta no índice de inflação mais observado pelo Fed de 3,5% (a meta lá é de 2% ao ano).
2. Laboratório de Orçamento da Universidade de Yale, com elevação de 13% na tarifa efetiva dos EUA: aumento de preços entre 1,7% e 2,1%, redução entre 0,6 e 1 ponto percentual no PIB e perdas de US$ 1 mil a US$ 1,3 mil para as famílias americanas.
3. Instituto das Economias em Desenvolvimento, ligado à Organização de Comércio Exterior do Japão (Jetro, na sigla em inglês), com tarifas de 25% dos EUA: queda de 0,6% no Produto Interno Bruto (PIB) mundial em 2027 (perda de US$ 763 bilhões), puxado por tombo de 2,7% no PIB americano de 2027 e forte impacto nos lucros de empresas americanas que dependem de componentes chineses.
4. Universidade Aston (Reino Unido), com tarifas de 25% sobre todas as importações, seguidas de retaliações na mesma alíquota: perda de US$ 1,4 trilhão na economia mundial e drástica elevação de preços nos EUA. Teria efeitos semelhantes ao da guerra comercial de 1930 que aprofundou a Grande Depressão.