
Manoel Pires, coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público, administra o Observatório de Política Fiscal do FGV Ibre. Nesse papel, considera a medida apresentada pelo governo para isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil um avanço do ponto de vista da justiça tributária. Mas avisa que ainda há problemas a corrigir, porque a estrutura do sistema proposto deve gerar mais complexidade e distorção. E embora aponte necessidade de ajuste, diz não ver quebra do compromisso de neutralidade –não elevar a carga tributária geral com a medida.
Como avalia o anúncio de isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil?
A isenção proposta pelo governo agora foi apresentada na campanha eleitoral por todos os candidatos. O grande empecilho era a fonte de compensação. A desoneração tem grande impacto fiscal e, por isso, o governo, até por restrição legal, precisa achar fonte de compensação para não ter impacto fiscal negativo no orçamento. Do ponto de vista econômico, desonera bastante gente, é uma medida bastante agressiva de desoneração. Pega um público de renda média baixa do Brasil, que tem sofrido do ponto de vista econômico nos últimos anos. Dá alguma condição de melhora de vida mais permanente para esse grupo. Aumenta muito a renda disponível desses contribuintes que estão sendo beneficiados. A tendência, como estamos falando de classe média baixa, é maior parte desse volume desonerado se transformar em consumo. A grande preocupação é até que ponto vai gerar estímulo ainda maior para a inflação quando o governo já se vê numa situação delicada em relação aos preços.
O valor projetado para compensar a renúncia de R$ 26 bilhões é de R$ 34 bilhões. O governo não vai seguir a neutralidade prometida, vai aumentar a arrecadação?
Ainda não se conhece o detalhamento. O governo está propondo duas medidas para compensar o efeito fiscal. A primeira é tributação sobre dividendos na fonte. Já no ano que vem, começa a arrecadar com isso, que hoje não existe. É uma alíquota de 10% que vai incidir sobre quem recebe mais de R$ 50 mil por empresa ao mês. Então, a faixa de isenção é muito alta. Outra medida é o imposto mínimo. Quem tiver renda anual muito alta, acima de R$ 600 mil, com alíquota efetiva de Imposto de Renda muito baixa, terá de pagar um complemento. As duas medidas juntas vão dar R$ 34 bilhões, só que tem um problema de descasamento. No primeiro ano, o governo vai arrecadar só com a taxa sobre lucros e dividendos. No segundo, vai arrecadar com as duas medidas. É provável que os R$ 34 bilhões não levem em conta o fluxo de tempo. No longo prazo, os números devem ser mais próximos.
Por que ocorre descasamento?
O que explica a diferença é que, quando o governo for isentar quem ganha até R$ 5 mil, as pessoas já deixam de pagar imposto no primeiro ano, que deixa de ser retido na fonte. Então, vai ter custo fiscal antes da consolidação. O governo fez a tributação de lucros e dividendos na fonte para tentar equiparar o desequilíbrio de caixa que a medida já teria no primeiro ano. A segunda conta é que, na alíquota de 10% sobre lucros e dividendos, tem uma parte que o contribuinte pode receber de volta. Paga 10% sobre lucros e dividendos, mas se essa taxação, somada à da empresa, ultrapassar 34%, recebe um crédito de volta. Serve para não aumentar muito a carga da empresa. Então, na declaração de ajuste, vão ter duas contas: a aplicação do imposto mínimo e a devolução dos lucros e dividendos tributados acima dos 34%, que o governo só vai conseguir devolver no final do exercício. Tributar lucros e dividendos vai aumentar muito a arrecadação no primeiro ano, mas no segundo será menor, porque começa a devolver. A compensação deve ser de R$ 34 bilhões no primeiro ano, mas no segundo já começar diminuir com a devolução.
É uma proposta complexa, não?
Para cobrir o custo fiscal da desoneração, o governo teve vários problemas. O que está sendo proposto é uma tentativa de solucioná-los. Gosto da ideia de imposto mínimo. Temos um problema no Brasil: a alta renda é muito subtributada. Quem está na faixa de renda elevada tem fontes de renda que são importantes e que não pagam imposto. Quem ganha R$ 1 milhão por ano tem carga efetiva menor do que quem ganha cinco ou seis salários mínimos. É um problema enorme do sistema tributário brasileiro, que gera regressividade e injustiça social. A partir de um determinado nível de renda, as pessoas têm de pagar um mínimo de imposto. Agora, para fazer isso, há problemas.
Quais?
Existem rendas que o governo quis tirar do imposto mínimo, por razões políticas. As verbas indenizatórias, que vemos no Judiciário, ficaram fora da conta do imposto mínimo. Rendas de LCA (Letra de Crédito do Agronegócio) e LCI (Letra de Crédito Imobiliário) também. O governo quis avançar na progressividade, mas deve ter visto que, ou não teria condição de comprar algumas brigas, ou que, se brigasse com todo mundo, a proposta não seria aprovada. Isso fez com que não fossem resolvidos todos os problemas de justiça tributária. O imposto mínimo vai ser aplicado de forma imperfeita, algumas fontes importantes de regressividade continuarão existindo, e ainda aumenta a complexidade. O cálculo do retorno do investimento financeiro também vai ficar mais difícil. Outro problema são os dividendos. Poderia só tributar no imposto mínimo, mas fez de outra forma para resolver o desequilíbrio de caixa do primeiro ano. O governo quis tributar na forma convencional, como regime de caixa. Foram criados regimes tributários diferentes, um para alguns ativos financeiros, outro para algumas fontes de renda, como lucros e dividendos. Isso aumenta a complexidade. E quando tributa lucros e dividendos, o que importa, no final das contas, é o nível total sobre as empresas. Uma empresa no Brasil paga 34%, e não se tributa lucros e dividendos. Então, a carga efetiva das empresas gira ao redor de 22%, dependendo de como a empresa se adequa ao padrão tributário do Brasil. Existem várias exceções, isenções. Se pegar a taxa de lucros e dividendos e botar em alíquota normal que vemos no Exterior, a carga poderia ficar muito alta. Então, o governo colocou um limite. Tributa 10%, mas, se no cômputo geral ultrapassar 34%, devolve.
Na prática, o que muda na tributação de empresas?
Não vai tributar em excesso, mas gera grande complexidade. Só depois que a empresa for tributada é que vai se ver se houve excesso. Será preciso calcular a carga efetiva e somar a tributação de lucros e dividendos para saber se estourou ou não para, então, devolver o dinheiro. E ninguém sabe qual é o cálculo de carga efetiva que a empresa vai ter de fazer. Pode mudar a cada ano, dependendo se a empresa teve lucro ou prejuízo, se investiu mais ou menos. Na prática, ninguém sabe qual será a carga tributária das empresas no Brasil com a nova regra. O sistema tributário vai ser muito mais complexo do que já é e, possivelmente, mais distorcido, ainda que corrija, em algum grau, elementos de regressividade.
Há risco de a taxação sobre dividendos afastar investidores estrangeiros?
Muita gente ligada ao mercado financeiro está falando isso, mas não acho que vá afastar. Na prática, a tributação sobre investidor no Brasil é baixa. E vai continuar baixa, mesmo com 10% sobre dividendos, limitada aos 34% sobre empresas. Nos países desenvolvidos, as cargas de empresas e acionistas somadas giram em torno de 45%. O que vai mudar é o planejamento tributário. Como há isenção para uma faixa de renda de distribuição de R$ 50 mil por empresa, deverão ser implementadas algumas formas de planejamento tributário para multiplicar as distribuições de lucros e dividendos e evitar uma parte do imposto.
Nas duas pontas, de desoneração e compensação, pode haver surpresa no Congresso?
O debate no Congresso, nesse tema, é uma caixa-preta. Acho difícil alguém ir contra a isenção. O Congresso deve se concentrar mais na discussão de financiamento, de como vai funcionar a tributação de lucros e dividendos, o imposto mínimo, se vai querer reduzir o alcance dessas medidas para adotar outras de compensação. O sistema tributário brasileiro é assim porque existem muitos lobbies. Mas as medidas de compensação, de fato, têm problemas. Muitas das críticas que vão surgir à proposta serão corretas. O próprio governo já sai na largada isentando algumas coisas. Deu sinal verde que esse debate é legítimo e deve ocorrer.
*Colaborou João Pedro Cecchini