Roberto Abdenur foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos por três anos durante sua carreira diplomática de 45 anos. Antes, havia representado o país na China em 1989, quando o governo comunista esmagou os protestos da Praça da Paz Celestial. Agora, está preocupado com o tom e os sinais de Donald Trump, que toma posse nesta segunda-feira (20) para um mandato de quatro anos na Casa Branca. Alerta que o Brasil será prejudicado pela guerra comercial e considera "improváveis" as ameaças de invasão feitas por Trump a Panamá, Canadá e Groenlândia, mas considera o novo presidente dos EUA "capaz de qualquer coisa".
O que espera do novo governo Trump?
O dia 7 de janeiro representou o fim de uma era de relativa paz no mundo desde o fim da Segunda Guerra. Trump anunciou a intenção de eventualmente tomar pela força Panamá, Groenlândia e anexar o Canadá. Foi a primeira vez que os Estados Unidos mencionam expansão de área depois de completar o seu território em 1848. Intervieram em muitos países, como Vietnã, Iraque, Afeganistão, para defender interesses, manter apaniguados no poder ou derrubar governos. Nunca para anexar território. Violaria o princípio básico da carta da ONU, o respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados. Isso é muito grave. Nos últimos 80 anos, não houve uma grande guerra.
Não é só bravata?
Pode ser bravata. Mas não se pode excluir que seja para valer. Trump é capaz de qualquer coisa e está muito impetuoso, com os republicanos dominados por ele e aderindo a essa intenção de agressividade no cenário internacional. Fico preocupado. Acho improvável chegar às vias de fato, mas não se pode excluir a possibilidade, sobretudo no caso do Panamá. Ele montou um gabinete de extremistas, com pessoas desqualificadas, sem experiência e até com maus antecedentes, sem escrúpulos.
No primeiro mandato, líderes republicanos e o serviço público americano, chamado de 'deep state', ajudaram a moderar as iniciativas de Trump. Isso não deve se manter?
No primeiro mandato, Trump não estava preparado para governar. Não tinha planos, ideias, roteiro. E houve assessores próximos, como se diz nos EUA, que eram os adultos na sala, inclusive militares, conselheiros de segurança nacional, altos funcionários do Departamento de Justiça. Agora é diferente. Tem plano de governo, fundamentado em 800 páginas, que traça um roteiro claro de intervenção no 'deep state'. A intenção é colocar um representante de Trump em cada principal órgão de governo, com instruções para destruir o que está lá e substituir por outras formas de atuar, com outros critérios e protocolos. E ele tem domínio absoluto sobre os republicanos, com uma ressalva. Alguns líderes são mais conservadores no plano fiscal. Trump pode ter alguma dificuldades para aprovar despesas, porque há preocupação com o aumento da dívida pública americana.
Se há esperança que a guerra física seja bravata, a comercial não será?
Ele diz que tarifa (em inglês, tariff é sinônimo da expressão "imposto sobre importação" em português) é a palavra mais bela da língua inglesa e vai usar como porrete. Isso quer dizer que vai usar como instrumento de pressão e chantagem sobre outros parceiros. Não só contra adversários, como a China, mas contra aliados e parceiros importantes, como os dois principais, México e Canadá, a quem está prometendo impor tarifas de 25%. Isso é contra os interesses dos EUA.
Por quê?
O problema básico é que vai aumentar o custo dos produtos para o consumidor americano, elevando a inflação. Também vai dificultar a importação de produtos, insumos e componentes para a fabricação nos EUA. É um tiro de canhão no pé, mas está sendo endossado cegamente pelos apoiadores e a maioria dos republicanos. Isso vai ser muito prejudicial para o Brasil, mesmo que a tarifa 'across the board' (para todo o mundo, sem especificação de país) fique em 10% e mais altas para Canadá e México. Já gera um prejuízo muito grande. Os Estados Unidos têm déficit com quase todo o mundo. Com a China, tem déficit de cerca US$ 250 bilhões. Com o Brasil, atipicamente, tem hoje saldo positivo ao redor de US$ 1 bilhão. Seria muito perverso se Trump agredisse o Brasil.
Se não haverá moderação interna, há expectativa de alguma externa, no sentido de conter uma escalada de risco?
É pouco provável. Uma pesquisa em 30 países, incluindo o Brasil, mostrou que a única região onde a imagem de Trump é muito negativa é a Europa. No resto do mundo, ele tem avaliação muito positiva, o que é muito surpreendente. A Europa será duramente afetada. Os EUA são o principal parceiro comercial, e Trump não gosta da Europa nem da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Um eixo de sustentação dessas oito décadas de relativa paz foi a parceria atlântica, entre EUA e Canadá de um lado e a Europa Ocidental durante guerra fria, depois com a totalidade da Europa. Foi baseada na Otan, no comércio, na tecnologia e em investimentos recíprocos. Agora, Trump enfraquecer a Otan ou até anulá-la se retirar o apoio ao artigo 5 da Carta da Otan, pelo qual os países se comprometem a defender qualquer outro membro atacado. Trump pode desfazer ou debilitar esse eixo do Atlântico Norte que foi importante para a manutenção da paz.
Analistas costumam dizer que a economia americana estava bem, o que custou a reeleição de Biden foi a inflação. O que pode ocorrer se a guerra comercial de Trump começar a pressionar demais os preços?
É muito possível, e até provável que os erros, exageros e barbaridades cometidos nos primeiros dois anos resultem em grande perda eleitoral nas chamadas mid term elections, as eleições para o Congresso dois anos depois da presidencial. É usual que a oposição ganhe do governo de turno. No caso de Trump, quase certamente fará muita coisa que fará eleitores que o apoiarem se arrepender disso. Pessoas votaram no Trump sabendo que ele faria coisas danosas contra elas. Entraram em paranoia inacreditável, com descrença no governo, na política, nas elites intelectual e científica. É muito clara essa divisão do país: cerca da metade está em revolta contra o status quo em geral, econômico, político, social, tecnológico, científico.
Esse fenômeno está relacionado ao aumento da desigualdade, como alertou Thomas Piketty anos atrás?
Outrora, o poder econômico privado tinha alguma influência sobre governos. Eram grandes banqueiros, gestores de fundos investimentos, grandes industriais. Tinham alguma voz sobre política econômica, financeira ou comercial. Era uma influência indireta, sutil, de bastidores. Agora, existe uma situação nova, com um punhado de bilionários americanos, como Elon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos, controlando o governo e agindo brutalmente em nome do governo, ao longo de espectro imenso de assuntos. O aumento da desigualdade é imenso nos EUA. É de onde vem a grande insatisfação com o status quo.
Há algo de bom que se possa esperar?
Incrivelmente, Trump pode até fazer coisa boa em política externa. Já está fazendo algo bom pressionar (Benjamin) Netanyahu a aceitar um cessar-fogo em Gaza. Isso é positivo. Ele não quer herdar esse problema depois de assumir. Deu ultimato. Emissários trabalharam juntos a quatro mãos para viabilizar esse acordo. O interesse de Netanyahu é prolongar o conflito o máximo possível para se preservar politicamente e evitar três processos criminais em que está envolvido.
Alguma outra esperança?
Pode até haver coisas boas topicamente, mas o movimento será para pior. Será um governo altamente disruptor, destrutivo, tanto dos órgãos de governo dos próprios EUA, quanto de acordos internacionais. Vai tirar o país do Acordo de Paris, porque ele nega que exista mudança do clima.
Qual é o tamanho do risco na relação entre EUA e China?
Trump tem, de certo modo, uma vantagem sobre Biden. Tem interlocução com Putin, o que pode ajudar a conter a Rússia e eventualmente levar a um cessar-fogo que não represente anexação definitiva dos territórios ocupados pelos russos. O mesmo com Xi Jinping (presidente da China), a quem ele admira. Trump gosta de autocratas e ditadores. Musk será vínculo importante entre ele e Xi, por ter imensos interesses econômicos na China. Tem uma megafábrica que acaba de completar a produção de 13 milhões de automóveis da Tesla. Musk é muito simpático ao governo da China e ao Partido Comunista Chinês. Ele diz ser libertário, é inescrupuloso, mas no que diz respeito à China é mansinho e totalmente amigável.
Pode ser um fator de moderação?
Pode atuar relação ao governo chinês, já tem estado presente em telefonemas de Trump com outros chefes de governo. Se Musk perdurar, o que é uma interrogação, pode ser um canal de comunicação interessante e positivo entre Trump e Xi, o que pode atenuar as relações entre EUA e China. A guerra comercial se agravará de qualquer modo. Mas pode haver distensão no plano político e militar, reduzindo risco de conflito no Pacífico entre forças aéreas e navais dos dois países.
Musk pode não perdurar?
É uma pergunta que muita gente se faz. Ele está se antecipando, fazendo sombra a Trump, que não gosta disso. Analistas americanos chamam atenção para isso. É possível que Musk não dure muito nessa parceria.
O que o Brasil tem a perder com uma guerra comercial?
As exportações para os EUA diminuirão. O Brasil atribui muita importância à OMC (Organização Mundial do Comércio), que é um veículo do multilateralismo. Antes do Trump, a entidade já está praticamente paralisada. Há muitos anos os EUA não permitem a designação de novos peritos para o mecanismo de solução de controvérsias (que medeia acusações de concorrência desleal entre países). Não vamos poder recorrer a essa medida contra os EUA. Estaremos indefesos diante da guerra comercial que Trump promoverá. É motivo de preocupação da indústria, do agro e dos exportadores, que precisam ficar muito atentos.