Em um momento dramático da crise climática global, uma das instituições mundiais mais importantes do mobilização para frear o impacto, a Organização Meteorológica Mundial (OMM), ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), tem pela primeira vez em sua história uma mulher no comando. É a argentina Celeste Saulo, que desde janeiro atua como secretária-geral da organização. Saulo, que atua na organização desde 2014, também foi diretora do Serviço Meteorológico Nacional da Argentina e professora da Universidade de Buenos Aires. Nesta entrevista exclusiva, comenta o aumento da frequência de eventos climáticos extremos no planeta e a importância da cooperação internacional para combater a crise do clima.
O aumento na ocorrência de eventos climáticos extremos está diretamente relacionado à mudança climática?
Sim, é isso que tem sido relatado e demonstrado em vários dos últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), pelo trabalho dos cientistas e especialistas dos grupos de trabalho. Mais que isso, a maior ocorrência desses eventos climáticos extremos, e com maior intensidade, comprova que os estudos que alertavam sobre esse risco em relação à mudança climática sempre estiveram certos. Então, a resposta é sim, e não se trata de opinião, tem base no conhecimento científico que nos permite dizer isso.
O objetivo do Acordo de Paris, em 2015, era frear o aumento da temperatura média global até 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Ainda é possível?
Não devemos desistir dessa ambição. O objetivo de limitar a 1,5°C pode contribuir para a sensibilização. Não creio que seja absolutamente fundamental chegar lá. Mais importante é a mensagem de que devemos perseverar e seguir nessa direção. Essa ambição tem de permanecer, porque mesmo que a barreira seja ultrapassada devido ao comportamento até agora, não podemos simplesmente parar de agir. Se há algo que não podemos fazer agora é não agir.
Todos devemos nos sentir frustrados por não conseguir reduzir esses efeitos e entrar em curva de desaceleração das emissões.
Quase uma década depois do acordo, como avalia seus efeitos?
A própria atmosfera mostra que não fizemos o suficiente. Se observarmos a medição das emissões dos gases de efeito estufa, há alta contínua. Se observarmos os impactos das emissões, como temperatura e frequência dos eventos climáticos extremos, também aumentaram. Então, é evidente que o que estamos fazendo não é suficiente. É claro que, quanto maior a produção e a emissão de gases de efeito estufa, mais nos atrasamos nesse combate. Todos devemos nos sentir frustrados por não conseguir reduzir esses efeitos e entrar em curva de desaceleração das emissões.
O que pode fazer a OMM, que centraliza a cooperação de vários países?
Todas estas questões que têm impacto local mas acontecem de forma global requerem necessariamente uma coordenação global. Para ter resposta efetiva à crise do clima, devemos agir de forma local, mas dentro de um sistema global de respostas e estratégias que permita ampliar a escala das ações. É esse trabalho de centralizar ações e coordenar as estratégias que a OMM executa, por isso a organização é tão importante, porque tem essa responsabilidade. Não é possível controlar a mudança do clima apenas em um país, de forma isolada. É preciso trabalhar de forma conjunta e cooperar internacionalmente.
Todas as cidades deveriam, hoje, ter planos de adaptação. Precisam aumentar áreas verdes, reduzir as superfícies de asfalto, usar sistemas de transporte que não produzam gases de efeito estufa.
Além de reduzir as emissões, será preciso adaptar as cidades para esses fenômenos climáticos extremos mais frequentes e intensos?
Sem dúvida. Existem medidas que podemos aplicar no dia a dia com base nos serviços meteorológicos, como melhores serviços de alertas precoces que permitem adotar ações emergenciais com mais antecedência. Uma grande quantidade de chuva requer certas ações, uma onda de calor extremo exige outras, assim como uma seca extrema. Em todos os casos, um alerta antecipado, avisando que o fenômeno vai ocorrer e projetando duração, impacto e intensidade, permite às sociedades, se for um aviso bem estruturado, tomar decisões mais efetivas. Essa é uma forma de se adaptar. Além disso, todas as cidades deveriam ter planos de adaptação às mudanças do clima. Precisam aumentar áreas verdes, reduzir as superfícies de asfalto, usar sistemas de transporte que não produzam gases de efeito estufa. Há muitas ações que já deveriam estar mais avançadas, principalmente na América Latina, onde há muito para evoluir nesse aspecto.
A grande desigualdade social nos países da América Latina é um desafio extra?
Sim, porque, como exemplo básico, não é o mesmo aguentar uma onda de calor em um apartamento ou uma casa com recursos do que em uma construção sem estrutura. O mesmo vale para chuva forte e frio extremo nas regiões onde ocorre. Além disso, são os mais vulneráveis que normalmente moram em encostas, mais suscetíveis a deslizamentos, ou em regiões que ficam mais rapidamente alagadas quando há grandes volume de chuva. As condições climáticas extremas são terrivelmente mais desvantajosas para os setores mais vulneráveis da sociedade. Isso cria uma intersecção dramática entre crise do clima e desigualdade social.
Precisamos de bons advogados defendendo essa causa, principalmente no nível de chefes de governo, que têm maior poder de decisão e de ação.
Qual o papel do Brasil na luta contra a crise climática, com boa parte da Amazônia em seu território?
Como qualquer país grande e importante, não só em aspectos econômicos, mas também em relevância internacional, o Brasil tem papel fundamental a partir do sentido de como propõe sua agenda de atuação. O presidente brasileiro tem sido claro em relação à agenda do país, em como quer priorizar o cuidado com o clima e o ambiente, com combate ao desmatamento da Amazônia e o compromisso com as gerações futuras. Um país com a relevância e a capacidade de liderança do Brasil, posicionado dessa forma, traz uma grande vantagem para o planeta nessa luta. Precisamos de bons advogados defendendo essa causa, principalmente no nível de chefes de governo, que têm maior poder de decisão e de ação.
Ter uma mulher, e latina, pela primeira vez no comando da OMM ainda é um desafio?
Qualquer forma de liderança e exposição implica enorme responsabilidade. Como mulher de um país em desenvolvimento, contribuo com uma visão complementar, com a experiência que tive morando no meu país, trabalhando no meu país, conhecendo as oportunidades e os desafios que enfrentamos em um país como a Argentina . As organizações globais ficam mais ricas e completas quando podem ouvir vozes, pensamentos e histórias diferentes. A diversidade é necessária porque o mundo é diverso, os problemas são diversos e as soluções também devem ser diversas. Os países em desenvolvimento têm muito a contribuir, e temos a responsabilidade de também assumir essa liderança a nível global.