Apesar de representar a maioria da população brasileira, negros ainda são pouco visíveis no ecossistema de startups. Psicóloga de formação e empreendedora , Maitê Lourenço está à frente do BlackRocks Startups (no masculino mesmo), aceleradora de negócios comandados por pessoas negras. O projeto nasceu de um incômodo: ao frequentar eventos de inovação, Maitê notou a ausência de negros nesses espaços. Por isso, decidiu mudar o cenário e transformar a falta de representatividade em uma oportunidade para impulsionar a potencialidade desse grupo. Para a CEO, é necessário olhar para pessoas negras e enxergar não só o racismo, mas o potencial desses profissionais e empreendedores. Na segunda quinzena de junho, a executiva foi a primeira pessoa negra a sair sozinha na capa da revista Exame, focada em negócios. Em entrevista à coluna, Maitê detalhou sua experiência.
Você é psicóloga de formação, por que decidiu criar o BlackRocks Startups? Entre 2015 e 2016, tinha um e-commerce de gestão de carreira, nada muito tecnológico. Quando passei a frequentar eventos de inovação para melhorar o site, no ecossistema de startups, não via pessoas iguais a mim. Fiz especializações em temas como design thinking e gestão de projetos. Não me sentia representada pela forma que as pessoas relatavam como haviam construído os negócios. Essa ausência me deixou muito incomodada. Eram homens brancos falando sobre o apoio que tinham recebido de outros homens brancos. As startups estavam crescendo, já era um espaço muito rico, que vinha ganhando dimensão. Por isso, pensei 'se ninguém está olhando para esse público, eu vou olhar'.
Como funciona o processo de aceleração?
Fizemos nossa primeira edição de aceleração com cinco startups em 2018. Estamos prestes a iniciar mais uma seleção das startups, que estão em pré-operação ou operação. Ou seja, são negócios que já existem. Para se candidatar, é essencial o uso de tecnologia como base da startup. O programa online de aceleração tem duração de quatro meses.
As pessoas estão buscando representatividade, exigindo o reconhecimento do quanto a população negra é forte.
Desde a criação do projeto, você observou alguma mudança no ecossistema?
Infelizmente não na proporcionalidade que necessitamos. Como população (negra), somos 54% do país. Hoje, a provocação pela ausência de pessoas negras é constante. As pessoas estão buscando essa representatividade, estão exigindo o reconhecimento do quanto a população negra é forte. Atualmente, existem críticas a eventos que não incluem palestrantes negros. Antes, isso era raro. As empresas estão sendo forçadas a mudar, ainda não de forma orgânica e natural, mas estão sendo obrigadas a mudar.
Quais são os desafios mais usuais que os empreendedores enfrentam?
Vou dar outra perspectiva a essa pergunta: quais são as potencialidades perdidas quando o ecossistema deixa de lado empreendedores negros? Me sinto muito mais confortável em falar sobre as potencialidades desses empreendedores. A primeira coisa é que, quando temos uma dor, um problema, no sentido de sociedade, precisamos consultar pessoas que vivenciem essa dor. No ecossistema (de inovação), muitos produtos acabam morrendo por não entender quem é o cliente. Ao trazer homens e mulheres negras para dentro da conversa, você entende o que o cliente quer, já que somos a maioria da população. Por exemplo, como resolver uma dor de mobilidade de transporte sem consultar pessoas que vivenciam a falta do transporte naquela região? É preciso entender que pessoas negras são o maior público consumidor.
A pandemia não aprofundou a desigualdade, só revelou o abismo que existe entre brancos e negros, entre ricos e pobres.
Um dos efeitos da pandemia é aprofundar a desigualdade no Brasil, e a assimetria de acesso é um dos maiores problemas para empreendedores negros. O que pode amenizar esse efeito?
Vamos ter de criar políticas públicas que diminuam essa assimetria. A pandemia não aprofundou a desigualdade, só revelou o abismo que existe entre brancos e negros, entre ricos e pobres. Por exemplo, em São Paulo bares e restaurantes localizados em bairros nobres estão em funcionamento, com todo o processo de segurança, já que o índice de contágio nesses bairros diminuiu, e a qualidade do atendimento hospitalar é muito maior do que em outras regiões da cidade. Isso exemplifica que já existe uma política para beneficiar esse público. Enquanto não houver equiparação, vai ser muito difícil. Sabemos quem está morrendo nessa pandemia, são homens e negros, esses corpos negros não são bem-vindos em lugar algum. Ações efetivas para combater o racismo estrutural precisam ser adotadas.
Qual seu diagnóstico sobre a falta de visibilidade de empreendedores negros?
O racismo estrutural é tamanho que invisibiliza essas pessoas. Assim como os profissionais negros só são convocados para falar sobre os atravessamentos do racismo, os negócios comandados por pessoas negras são questionados sete mil vezes por isso. Se esse negócio não tem nenhum impacto social, fica perdido no ecossistema. É como se não tivesse outro diferencial. Além disso, pessoas negras tem três vezes mais dificuldade de acesso à credito. A estrutura em que vivemos é muito racista.
Infelizmente, ainda existe a premissa de que negros só podem falar de racismo.
Você citou que, em algumas situações, profissionais negros são lembrados apenas para relatar sua experiência de atravessamento do racismo. Como mudar essa situação?
Temos uma história de raça muito bonita de ser contada. No Black Rocks, gosto muito de separar o que é raça e o que é racismo. Trazendo para essa perspectiva de empresas, é muito comum que exista cobrança pela presença de pessoas negras em posição de liderança. Porém, colocam sempre essas pessoas negras em cargos relacionados à diversidade. É importante? É. Mas deveria ser uma ação transversal, um pilar. É muito complexo. Infelizmente ainda existe a premissa de que negros só podem falar de racismo.
Com todas essas questões, o que explica o fato de os negros serem maioria entre os microempreendedores brasileiros?
Somos um povo de muita resiliência, mesmo perdendo todos os nossos direitos durante o período de escravidão, somos maioria no país. Não existe nada biológico, essa prática do empreendedorismo está muito relacionada à nossa estrutura intelectual. Ao mesmo tempo, a precariedade do mercado de trabalho e a desvalorização nos leva ao empreendedorismo. No contexto histórico, as primeiras empreendedoras do país foram as quitandeiras, trazendo essa perspectiva de ganho para manutenção da vida. No século 21, com a precarização do trabalho, o encarceramento em massa da população negra, o empreendedorismo desponta como uma saída. Quando pensamos em adaptabilidade, criatividade, surge uma linha imensa de ações. O povo negro é lembrado na área cultural, de alimentação. O Brasil é lembrado internacionalmente pela criatividade negra.
O nome de sua aceleradora é parecido com o da BlackRock, uma gigante gestora de recursos americana. Foi proposital ou é coincidência?
Foi coincidência. Quando comecei as pesquisas sobre o nome, achei a gestora. Para a nossa sorte, temos autorização deles para usar o nome. Eles sabem que a gente coexiste.
É uma responsabilidade muito grande quando as pessoas te enxergam como uma referência.
Você foi a primeira pessoa negra a sair sozinha na capa da Exame. Qual foi o impacto pessoal e profissional?
No pessoal, fiquei triste. Simples assim. Ao mesmo tempo, me senti lisonjeada por ter sido a capa. É uma responsabilidade muito grande quando as pessoas te enxergam como uma referência.
O que podem fazer outras pessoas que querem melhorar o acesso de pessoas com menos oportunidades ao empreendedorismo?
Reconhecer que o racismo existe. Ainda tem pessoas que acreditam que somos todos iguais, e isso faz com 90% das ações que poderiam ser combatidas não sejam. Para se aliar, é preciso entender quais privilégios a pessoa possui. É preciso que a pessoa não negra se pergunte 'qual a diferença quando eu vou ao banco e consigo um crédito de forma rápida?'. É necessário questionar 'será que eu estou conseguindo porque todos conseguem ou porque sou uma pessoa branca?'. Além disso, algumas ações são fundamentais, como a indicação de profissionais negros para vagas. É um trabalho que requer muito exercício, já que pessoas brancas não se entendem como racializadas.
* Colaborou Camila Silva
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