– Sabe com quem nos parecemos? Aqueles personagens que passam o tempo inteiro esperando o Godote.
– Esperando quem?!
– O Godote.
– Quem é o Godote?
– Da peça do Brecht. Esperando Godote.
– Em primeiro lugar, não se diz Godote. A pronúncia certa é Godô.
– Godô? O cara é francês?
– Quem?
– O Brecht.
– O autor da peça não é Brecht. É Beckett. Que, como qualquer pessoa minimamente informada sabe, era americano.
– Desculpe minha ignorância. Desculpe minha desinformação. Desculpe minha existência.
– Bom, se você vai ficar sentido só porque...
– Sentido, eu? Nós, os primitivos, não ficamos sentidos. Quem fica sentido é gente fina. Gente bem-informada...
– Está bem, está bem. Já tivemos nossa briga da semana. Vamos pedir mais dois chopes e mudar de assunto.
– Não, você não vê? Estas brigas são o nosso significado. Nosso assunto é sempre este, minha ignorância e a sua sapiência. Sua classe e a minha rudeza de espírito. Por isso que eu venho a estas nossas reuniões semanais. Para desempenhar meu papel. Para ser humilhado pela sua cultura superior, semana após semana após semana. Como os dois personagens de Esperando Godot...
– Acho que são três.
– O quê?
– Os personagens de Esperando Godot. São três.
– Viu só? Mais uma vez você me expõe como um semiletrado. O que mais uma pessoa minimamente informada deveria saber sobre Esperando Godot? Vamos, me arrase.
– É uma peça difícil. Você não tinha a obrigação de saber tudo sobre ela.
– Obrigado, obrigado. Estou me sentindo menos burro. – O significado da peça não é claro. Nem pra mim. O que simbolizam os três personagens em cena? Godot seria Deus, que os três procuram inutilmente?
– O que ele diz, quando chega?
– Quem?
– O Godot.
– O Godot nunca chega. Tudo se passa num cenário neutro, vazio, simbolizando a ausência de Deus. A peça poderia se passar até numa mesa de bar, com os três personagens numa conversa absurda, sem sentido.
– Ou dois personagens, esperando a chegada de um terceiro.
– Que nunca chega. Mas a conversa não para. A conversa é eterna.– Lembra da última briga que nós tivemos?
– Claro. Foi na semana passada.
– A questão era: o que fazem os vaga-lumes de dia?
– Não chegamos a nenhuma conclusão.
– Mas na semana que vem tem mais.