ZH do fim de semana trouxe ótima entrevista da Larissa Roso com José Henrique Bortoluci, que eu li com interesse provavelmente superior ao do prezado leitor porque estava terminando de ler seu livro, O Que é Meu, da editora Fósforo. O nome e o título do livro não trazem nada de convocador em si mesmos, porque nenhum dos dois é afamado – mas os dois valem muito a pena.
O autor é sociólogo mas seu livro é menos de análise do que de depoimento direto: trata-se de um relato sobre a história do pai, acompanhado de conversas inteligentes sobre as circunstâncias. Ocorre que esse pai, um senhor aposentado, foi caminhoneiro. Partindo de sua cidade, Jaú (SP), ele percorreu o Brasil todo, com especial ênfase no norte brasileiro, esse mistério que já foi chamado de "inferno verde", na língua dos sulistas e sudestinos imperiais, e que agora desponta como nossa eventual salvação.
O andamento do livro é excelente: são pequenos textos, umas 25 ou 30 linhas, cada qual focado num particular ângulo da vivência do pai e da família. Foi escrito durante a pandemia e o calvário do pai em busca de tratamentos de saúde, e isso aparece na superfície do relato, entremeado com memórias – para além da lembrança do filho, que via seu pai a intervalos regulados por prolongadas ausências, há também falas do pai, transcritas com inteligência e delicadeza, respeitando marcas da oralidade (economizando nos plurais, por exemplo) mas sem forçar a barra.
O livro ajuda a pensar esse imenso Interior, o "sertão" brasileiro, o mundo que uma vez foi a-cavalo e hoje é a-caminhão, mas que mantém o mesmo padrão masculino e patriarcal, do indivíduo solitário que encontra pares em outros como ele, dispostos a honrar o fio do bigode e arrostar perigos e desafios, como vago sonho de ascensão social. Não é uma tese sobre esse mundo; é um retrato, um road-movie por escrito, cheio de afeto e vontade de entender.
O pai e sua experiência, por outro lado, são já parte do passado brasileiro. É um mundo que acabou, simbolicamente, quando caminhoneiros pararam o Brasil em 2018 e ajudaram a eleger o infausto governo passado, movidos ainda por algo daquela ética patriarcal e valente, mas agora alimentada por redes sociais infestadas de oportunistas e golpistas, num mundo de hiperconsumo e emergência climática, um par insustentável.
Para além disso, aquele mundo também é apenas lembrança porque o filho, nascido de pai e mãe trabalhadores braçais, experimentou a mobilidade social proporcionada pela escola, provavelmente pelos mecanismos postos à disposição pelos governos socialdemocratas de FHC a Dilma – e eis o autor com um doutorado nos EUA e agora professor de curso superior, mas sem ter negligenciado justamente esse processo, tão brasileiro, de viver em apenas duas gerações essa vertigem, que por certo ainda não entendemos direito.