
O futebol, de tempos em tempos, bebe da fonte de gênios. São mentes privilegiadas, capazes de redirecionar o jogo, mudar o eixo e refazer alicerces. Johan Cruyff, nos anos 1980, mudou a forma de como jogador, bola e espaço se relacionavam, aperfeiçoando o que havia aprendido com Rinus Michels na Laranja Mecânica holandesa.
Antes deles, o húngaro Gusztáv Sebes acendeu a centelha que fez jogador de futebol virar atleta, tudo temperado com inovações táticas, como o falso nove em um tempo no qual se usava o WM. Eles foram o que Pep Guardiola está sendo para nós hoje, fazendo um mix de tudo o que esses caras deixaram como legado.
Na noite deste sábado (6), em Las Vegas, estará do outro lado um desses mestres que transformam o jogo e pensam à frente. O argentino Marcelo Bielsa, 68 anos, assumiu o Uruguai depois da Copa do Catar e o impulsionou. Tanto que o Brasil entrará em campo como franco-atirador na disputa por vaga na semifinal da Copa América. Bielsa, é verdade, tem um ano a mais de trabalho na seleção. Mas a razão do favoritismo uruguaio não é só temporal.
É pelas ideias e pelos métodos de Bielsa, que fazem dele o guru de muitos técnicos da nova geração. Guardiola, por exemplo, atravessou o oceano em 2006 para ouvi-lo. Bielsa o esperou com um assado em seu sítio, próximo a Rosario. A sobremesa durou 11 horas, de puro futebol.
Bielsa enxerga o jogo como quase ninguém vê. Dispensa o todo e se até aos detalhes. É minucioso, obcecado pelos movimentos no campo, incansável na busca pela sincronia nos movimentos. Tenta predizer o que acontecerá, e isso alimenta sua obsessão pela mecânica das suas equipes. A origem dessa busca incessante pela perfeição está, como acontece com todos nós, na criação trazida de casa.
Os Bielsa são reconhecidos na Argentina por serem letrados. O avô, Rafael, foi um um jurista reconhecido na Argentina. Tanto que acabou nomeado professor honorário na Sorbonne. Marcelo cresceu usufruindo desse ambiente e da vasta biblioteca do avô.
O pai, Rafael também, seguiu os passos no Direito. Foi um advogado bem-sucedido, mas conforme um perfil dos Bielsa publicado no Clarín, era um "bom vivant". A relação com os filhos sempre foi tormentosa. Coube à mãe, a professora Lídia, a construção de uma personalidade inflexível nos três filhos. Seus mantras: "Em tudo o que façam, sejam os melhores" e "Rechacem tudo aquilo que não exija sacrifício".
Marcelo, portanto, só poderia se tornar o perfeccionista que é como técnico. Isso o faz buscar soluções pouco usuais. Em um ambiente quadrado como é o futebol, claro que alguém que pense diferente cause estranheza. Por isso, o apelido "Loco" antecede o sobrenome Bielsa. Ele, é claro, colabora. São inúmeras as histórias que coleciona.
No Newells's, um de seus amores, esquadrinhou a Argentina em 70 zonas e saiu em seu Fiat 147 a buscar jovens talentos nelas. Em uma, bateu na casa dos Pochetino à 1h da manhã para ver o adolescente de 14 anos do qual se falava maravilhas. "Mas ele está dormindo", alegaram os pais de Maurício. Bielsa não se rendeu. Pediu para entrar no quarto e mirar as pernas do guri que, segundo ele, estava na mira do rival Rosario. "É esse o jogador que buscamos". Maurício virou zagueiro do Newell's, da seleção, do PSG e, hoje, é um dos grandes técnicos do mundo.
Outra história: depois de cair com a Argentina na primeira fase da Copa de 2002, foi para a entrevista coletiva em que anunciariam sua renovação com respostas para 800 possíveis perguntas que poderiam ser feitas pelos jornalistas. 800!
Uma última: em 2016, Roger Machado tomava café no CT Luís Carvalho quando o porteiro interfonou, dizendo que havia um tal Marcelo Bielsa querendo conhecer a estrutura. Roger não entendeu nada, mas foi até o portão e deu de cara com Bielsa. Ele estava numa conexão longa no Salgado Filho, depois de uns dias em um SPA em Gramado, e queria aproveitar o tempo para levar ideias ao futuro CT do Newell's, cujo prédio ele presentou ao clube, em investimento de USS 2,5 milhões. O projeto, aliás, foi desenhado pela irmã.
É esse Bielsa que estará do outro lado, neste sábado em Las Vegas. Sugiro que desfrutem.