Toda a vez que venho escrever sobre as terríveis consequências do machismo para a sociedade me pergunto se realmente é necessário fazer isso de novo. Aí lembro da motorista de aplicativo que foi esfaqueada pelo ex-companheiro em Guaíba, do filho que assistiu ao pai disparar três tiros contra a mãe dele, em Torres, e da mãe que ouviu os gritos da filha no portão após ela ser esfaqueada e morta pelo ex-namorado - nesse último caso, a jovem tinha 22 anos e preparava um bolo de laranja quando foi atender ao homem que não aceitava o fim do relacionamento. Morreu na frente de casa.
Vamos então ao episódio Queiroz. E aqui não quero falar de laranja e nem mesmo de rachadinha, fatos que merecem investigação severa por parte da polícia e do Ministério Público Estadual. O assunto desta coluna é a decisão do presidente do STJ, João Otávio Noronha, e uma realidade perversa que trata o corpo da mulher como objeto de posse do homem. Nesta perspectiva, considerando a mulher menor do que o ser masculino, ela deve servir ao marido enquanto esposa e prestar-lhe os cuidados necessários.
Foi isto o que disse o ministro Noronha ao conceder prisão domiciliar para Márcia Aguiar, esposa de Fabrício Queiroz, que estava foragida desde a prisão do companheiro, mas apresentou-se à polícia na noite de sexta-feira (11) e voltou surpreendentemente para casa após ser beneficiada com regime mais brando. Para justificar a decisão, Noronha disse que o marido (Queiroz) precisava ser cuidado e, sendo assim, nada melhor que a mulher para fazê-lo.
"O mesmo vale para sua companheira, por se presumir que sua presença ao lado dele seja recomendável para lhe dispensar as atenções necessárias", assinalou.
À coluna Painel, do jornal Folha de São Paulo, a professora da Unicamp e antropóloga Maria Filomena Gregori disse que a decisão de Noronha mostra uma visão antiga sobre os papéis de homens e mulheres na sociedade. Ela lembrou que o caso não é único. No episódio de corrupção envolvendo Sergio Cabral, a Justiça entendeu que Adriana Ancelmo, casada com o ex-governador do Rio, é quem deveria cuidar dos filhos.
"Existe na Justiça brasileira ainda essa distinção mais tradicional sobre as posições de gênero, que é utilizada sobretudo por advogados para conseguir neutralizações de penas. É algo antigo, baseado em posições mais tradicionais de gênero. (...) É a constatação de que a Justiça é perpassada por valores. Certamente o ministro Noronha, no sentido de neutralizar o apenamento, está se utilizando de uma visão mais tradicional das posições de gênero, porque implica na ideia de que a mulher pode ser morta, no caso dos feminicídios que acontecem, mas ainda ocupa a posição de cuidadora", conclui.
Já pontuei aqui e reforço: é urgente a necessidade de reforçar em nossa a sociedade a perspectiva da independência feminina, cabendo aos homens uma reflexão. Não, as mulheres não são suas servas, nem suas propriedades. A vida das mulheres importa.
É triste que essa visão misógina e equivocada, que pressupõe "papeis" para homens e mulheres, continue presente em 2020. E é ainda mais lamentável que a Justiça compactue e promova a manutenção dessa perspectiva.