Com os avanços da medicina moderna e a identificação dos múltiplos fatores que contribuem para o aumento da idade média da população, estamos produzindo uma legião de longevos sem termos tido tempo de preparar-nos para dar um sentido à protelação da morte.
Esta preparação deveria incluir obrigatoriamente a preservação da utilidade, que faria muita diferença na aceitação das famílias. Essas deixariam de pensar no seu amado como um peso morto, carente de autonomia e função.
Não há unanimidade quanto a As Intermitências da Morte ser o melhor livro de Saramago, mas ninguém discute que a ideia é genial. Imagine-se que um rei determinado a não perder a mãe agonizante determinou que, no seu reino, ninguém mais morreria. Depois da euforia inicial pela vida ilimitada, começaram os problemas, primeiro com os coveiros, mas como eram poucos, foi fácil realocá-los em outras tarefas. Depois, em poucas semanas, os hospitais estavam atulhados, porque o banimento da morte não eliminava a doença. Então se chegou a um impasse: não havia onde mais colocar os moribundos, e levá-los pra casa nem pensar porque, afinal, os familiares tinham suas vidas, e cuidar de cadáveres interrompidos ninguém merecia.
Os dados sobre longevidade mais assustam do que animam um mestre da medicina.
Convencidos de que a morte, por mais dolorosa e cruel, seguia sendo natural e indispensável diante de tantos transtornos, houve um certo alívio quando uma carta foi encaminhada pela própria Morte a uma emissora de televisão, para que fosse levada a público a notícia da sua volta. Contudo, o retorno dar-se-ia sob novas regras: "A partir da meia-noite de hoje se voltará a morrer tal como sucedia, sem protestos notórios, porque depois da amostra de como seria viver para sempre, a partir de agora toda a gente voltará a morrer, mas passará a ser prevenida por igual e terá um prazo de uma semana para pôr em dia o que ainda lhe resta na vida".
E a vida no reino voltou ao normal, restabelecido o ciclo vital que encerra perda e recomeço.
No mundo real, periodicamente retomamos a discussão sobre o sentido da vida. Numa dessas assembleias médicas, onde predominavam veteranos, se debatia a qualidade de vida como justificativa primeira para quem aspirasse extrapolar a média. O professor, de maneira objetiva e realista, lamentava que não estivéssemos como médicos e cientistas pesquisando como melhorar nossos órgãos e sistemas para as décadas extras, que eram anunciadas como se tudo fosse uma maravilha.
"Quando ouço que, de cada três pessoas nascidas nesta década, duas chegarão aos 100 anos, isso mais me assusta do que anima. E tanto me assusta que tenho pensado em suprimir algumas medidas que adoto desde os 45 anos, quando decidi que viveria o máximo que fosse possível. Pensando, claro, que teria 45 anos para sempre. Agora com 80, penso que a falta de planejamento foi constrangedora. Nossos órgãos, claramente, têm prazos de validade: nossos olhos, ouvidos, ossos e articulações aparentemente foram concebidos para uso pleno numa época em que, raramente, se ultrapassava os 50 anos."
Um gaiato, na primeira fila, imaginou que encantaria o mestre com um reforço da tese: "E o nosso sexo também não, não é, professor?".
A velocidade da resposta e a intolerância a compartilhar o protagonismo mostraram que, pelo menos, a inteligência e o senso de humor continuavam intactos: "Desculpe, mas eu nem sei do que o senhor está falando!".