
Sou um militante intransigente do pragmatismo. Não aquele pragmatismo cínico, que serve como justificativa para deixar de lado os valores e princípios morais de quem se rende ao inaceitável, mas do pragmatismo da realidade. Certa vez ouvi uma palestra do presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, e uma frase dita por ele tornou-se mantra pra mim: “é muito difícil dialogar com quem não vive na mesma realidade fática que a gente”.
Então vamos aos fatos: a deputada Erika Hilton é uma mulher. Goste o leitor ou não de suas pautas, de seu partido, de suas ideias progressistas que vez ou outra flertam com autoritarismo ideológico, Erika Hilton é uma mulher. Eleita entre os dez deputados federais mais votados de São Paulo, o maior colégio eleitoral do país. Em todas as suas documentações civis, seu gênero é reconhecido como feminino. Não há o que discutir quanto a isso.
Diante disso, vamos a mais fatos: quando um parlamentar vai em missão oficial da Câmara dos Deputados para outro país, o visto solicitado pela Casa é solicitado diretamente à embaixada do destino. A Câmara envia a documentação dos parlamentares e o visto especial é concedido. O documento é expedido, claro, de acordo com a documentação dos viajantes, fornecida pelo Estado brasileiro. Não cabe, portanto, a país nenhum do mundo alterar uma informação nessa documentação fornecida por um dos três Poderes que compõem a República brasileira. É um incidente diplomático grave, independente de quem seja o alvo da mudança.
Mas por aqui, o debate é sempre superficial. A direita, que acusa constantemente — e muitas vezes, com razão — a esquerda de ser “lacradora”, se recusa a observar que a atitude patética do governo americano segue a mesma cartilha da lacração que tanto critica. Não cabe a um país determinar o gênero de um parlamentar de outro, não é possível que não reconheçamos isso. É uma situação de desrespeito, de abuso de poder, de evidente interferência estrangeira em um assunto absolutamente doméstico, que é a existência de uma deputada transsexual reconhecida por seu gênero autodeterminado, o que a lei brasileira permite — novamente, goste o leitor ou não.
É a diplomacia da 5ª série. E pra quê? Qual é a intenção? Qual é o debate proposto? O que vai mudar com essa atitude? O que se ganha com essa bobagem?
Enquanto isso, pautas importantes que não precisavam ser ofuscadas por essa polêmica ficam em segundo plano. E faz sentido que fiquem, mesmo, afinal de contas, como mencionei, é um fato grave. Grave e desnecessário. Não se produz nada profícuo a partir desse ato infantil do governo americano.
Pelo contrário: o que se produz é mais ressentimento, mais ruído e mais munição para os extremos — tanto para quem se alimenta de perseguições simbólicas como forma de validar sua narrativa de resistência, quanto para quem usa episódios assim para reforçar a tese de que o mundo enlouqueceu e que há um complô internacional “woke” a ser combatido. Ninguém sai ganhando. O respeito à autodeterminação de gênero de uma parlamentar brasileira, legitimamente eleita, não é favor — é obrigação diplomática mínima. E a soberania do Brasil não pode ser relativizada por capricho burocrático de nenhum consulado estrangeiro.
A pergunta que resta é: até quando vamos tratar questões sérias com o deboche das redes sociais? Até quando a política internacional vai se curvar ao revisionismo moralista de playground? Não há democracia madura que se sustente nesse ambiente de provocação gratuita e infantilização da divergência. O pragmatismo exige que a gente mire o que importa e não desvie do essencial: neste caso, garantir o respeito institucional que qualquer parlamentar brasileiro merece, seja qual for o seu nome, a sua pauta ou a sua identidade.
O resto é cortina de fumaça.