O horror da covid-19 faz, paradoxalmente, a Páscoa retomar o significado profundo de ressurreição, que havíamos substituído pelo louvor ao chocolate. Os cuidados e sacrifícios de hoje compõem o caminho com que voltaremos, em breve, à vida normal de sempre.
A Páscoa cristã é ressurreição por relembrar o sacrifício da cruz, tal qual a Pessach judaica, que (em parte, lhe deu origem) festeja o fim da escravidão dos antigos hebreus no Egito. A ventura de reviver ou ressurgir só ocorre quando o sacrifício vence a catástrofe.
A dimensão da beleza de viver surge do triunfo sobre desastres e ameaças.
Por isto, é estranho (ou inconcebível) que o presidente do Brasil tenha ciúme do rumo correto com que o ministro da Saúde encara o perigo do coronavírus.
Pergunto: o que Bolsonaro esconde ao tratar Mandetta com desprezo só porque o ministro tenta conter a expansão da nova peste? Se a peste não existisse, a linguagem vulgar com que o presidente o tratou já seria um escândalo. Disse, por exemplo: "Algumas pessoas no meu governo, algo subiu à cabeça delas. Estão se achando. Eram pessoas normais, mas de repente viraram estrelas. Falam pelos cotovelos. Têm provocações. A hora deles não chegou ainda, mas vai chegar. A minha caneta funciona".
Em entrevistas quase diárias, o médico e ministro Mandetta tem dialogado com o Brasil inteiro, tal qual um pai experiente aconselha os filhos. Nada é "anormal" nem significa "virar estrela".
Só um inexplicável surto delirante parece definir a conduta do presidente da República ao antecipar que "a hora" de demitir
o ministro "vai chegar". E tudo isto, logo após (ajoelhado, como um penitente) o presidente ouvir o pastor de uma igreja pentecostal afirmar que já "não haverá mais mortes pela covid-19 no Brasil, porque o país estará abençoado por Deus e por Bolsonaro".
•••
Essa deificação de Bolsonaro dando-lhe o poder de "abençoar" terá feito com que ele passe a crer que o segundo prenome, "Messias", voou da certidão de nascimento e se encarnou nele como realidade?
É absurdo pensar que o poder político lhe tenha inoculado tal delírio, ou que haja transformado o presidente num charlatão que simula ser médico e expede receitas. Ou dá palpites sobre medicamentos em cadeia nacional de rádio e TV, como fez com a cloroquina. Por menos do que isso, há charlatães na cadeia.
O novo vírus amontoa mortes mundo afora, mais do que tudo onde não houve cuidados nem prevenção. O atual outono frio faz prever um inverno gelado e úmido, ideal para o vírus se expandir e atacar. O presidente, porém, age como se o coelho da Páscoa pusesse ovos, mesmo, ou como se o mundo fosse de chocolate.
Mas é Páscoa, com ou sem chocolate.