Eu andei de trem húngaro. Está certo, faz tempo, mas a impressão que tenho é de que os nossos trens húngaros não perdiam para o TGV francês ou para o trem-bala japonês. Era um trem confortável, quase luxuoso, só que com a passagem cara para quem mal começava na profissão, como o degas aqui, no início dos anos 1980.
Naquela época, eu trabalhava no famoso Departamento de Promoção e Assessora de Imprensa da Livraria, Editora e Distribuidora Sulina. Meu chefe era o Sérgio Lüdtke. Um dia, recebemos a incumbência de organizar a sessão de autógrafos do livro Um Hóspede na Sacada, do Liberato Vieira da Cunha, em Cachoeira do Sul.
Bem. O Liberato e o Sérgio são de Cachoeira do Sul. Logo, o lançamento do livro certamente seria um sucesso. Tanto que o próprio dono da Sulina, o Leopoldo Boeck Filho, decidiu que compareceria ao evento.
Às vezes repito umas histórias, mas acho que essa nunca contei, devido ao seu desfecho comprometedor para mim e para o Sérgio. Mas agora vou em frente. Seja o que Deus quiser.
Eu gostava muito do Leopoldo, mas sentia certo medo dele. Afinal, tratava-se do capo di tutti capi da firma. Quando ele passava diante do nosso departamento, caminhando com as costas eretas, o queixo erguido de contentamento, nós ficávamos em estado de alerta. “Olha o Leopoldo aí! Olha o Leopoldo aí!”
Naquela noite de autógrafos, o Leopoldo ficou satisfeito. Como esperávamos, foi um evento bem-sucedido. Vendemos dezenas de livros, e o Liberato passou horas fazendo dedicatórias. Depois disso, ele foi jantar com o Leopoldo, que, antes de nos deixar, avisou:
- Vamos voltar nós três de madrugada, de trem húngaro.
Uau! Nunca havia andado de trem húngaro, até então. Só ouvia maravilhas a respeito. Não recordo exatamente que hora da madrugada o trem chegaria a Cachoeira, mas o certo é que tínhamos bastante tempo. Como o Leopoldo continuou com o Liberato, num jantar tardio, o Sérgio propôs:
- Vamos ao Palácio do Prazer?
Duplo uau!
Palácio do Prazer? Não conhecia, mas, com esse nome, o lugar na certa era alegre. Sorri para o Sérgio:
- Palácio do Prazer! É onde quero estar, numa noite como essa!
E lá fomos nós. Era uma boate onde garotas jovens e atraentes se dispunham a entreter a clientela, desde que fossem bem remuneradas. Pedimos uns drinques e logo umas três ou quatro pequenas flores do Vale do Jacuí se acercaram da nossa mesa. Empreendemos uma animada conversa, enquanto sorvíamos dos nossos copos e volta e meia gritávamos para o garçom:
- Tábata quer mais um martíni!
Decidimos, eu e o Sérgio, que não ousaríamos fazer qualquer proposta romântica para as moças, por absoluta falta de fundos.
Então... Oh, minha Nossa Senhora! Os drinques saíram muito mais caro do que esperávamos
Assim, continuamos bebendo e conversando inocentemente, até que chegou a hora de pagar a conta. Então... Oh, minha Nossa Senhora! Os drinques saíram muito mais caro do que esperávamos. E agora? Já estava na hora de irmos para a Estação Ferroviária.
- O que vamos fazer? - perguntei ao Sérgio, enquanto reparava no olhar hostil dos seguranças da casa.
Ele:
- Bem. Estou com o dinheiro das vendas do livro do Liberato...
Desta forma, a literatura salvou nossas vidas.
O problema é que ainda tínhamos de pagar aquela conta para a Sulina, e era muito mais do que ganhávamos. O jeito era confessar o crime ao Leopoldo e esperar que ele fosse complacente. Lembro de nós sentados em torno à mesa do vagão do trem húngaro, tomando café e pedindo perdão. O Leopoldo ouviu tudo em silêncio e, depois, deu o veredito:
- Gastaram em sacanagem! Vão ter que pagar!
Eu e o Sérgio passamos 24 horas angustiados, pensando em como iríamos para quitar aquela dívida. Nos tornaríamos escravos da Sulina! Mas, no outro dia, o Leopoldo surgiu no Departamento sorrindo e disse:
- Não se assustem. Eu pago a conta. Imagino se ia sacanear quem gastou em sacanagem.
Esse era o Leopoldo.
Mas contei toda essa história porque o Liberato me enviou uma mensagem a respeito de uma crônica minha. Escrevi demais e terei de falar da mensagem amanhã. Aguarde. Então... Oh, minha Nossa Senhora! Os drinques saíram muito mais caro do que esperávamos