O processo eleitoral em 2020 deverá ser ainda mais contaminado por desinformação política e com ferramentas mais poderosas de propagação deste tipo de conteúdo. A previsão é do professor David Nemer, da Universidade da Virginia, nos Estados Unidos, que tem se dedicado à pesquisa sobre o impacto da tecnologia na sociedade. Nemer é brasileiro com mestrado em Ciência da Computação e doutorado em Antropologia. Integra o Departamento de Mídia da universidade americana. Para este ano, ele faz outra previsão: se nas últimas eleições, a principal ferramenta de distribuição de inverdades foi WhatsApp, neste ano o Instagram vai tomar esse lugar.
Já há algumas eleições, temos visto o uso mais profissional e sistemático das redes sociais na propagação de informações falsas com interesse político. Em 2020, há motivos para acreditar que isso vai se repetir?
Sim. E acredito que virá até com mais potência. Em 2018, foi uma coisa inédita no sentido da dimensão em como a desinformação foi promovida. E também vimos como foi a atitude e a forma como as instituições reagiram a isso. A mensagem que ficou é que a impunidade é um atrativo para esse tipo de prática. Então, em 2020 eu acredito que teremos ainda mais fake news do que em 2018.
As autoridades ainda são incapazes de combater de fato as informações falsas?
Acho que não. Eles têm os instrumentos pra isso. Agora, é preciso deixar claro: é impossível acabar com fake news. Desinformação não é uma coisa nova, sempre existiu. A gente pode ir nas origens, quando se faziam fofocas, mentiras que ficavam mais localizadas e chegar até hoje, quando se usam instrumentos poderosos para propagar isso. Mas mentira e desinformação sempre estiveram ao nosso redor. O que cabe às instituições é ter um pulso mais firme e atacar os principais, os chamados “hubs” de desinformação e punir. Uma vez que você pune, você deixa um exemplo e qualquer pessoa que for se engajar nessa atividade vai pensar duas vezes.
O WhatsApp foi um instrumento poderoso de disseminação de informação falsa na campanha passada. A sua pesquisa mostra que o Instagram pode ser ainda mais poderoso. Por quê?
O propósito do WhatsApp é muito variado. As pessoas encontram nesta ferramenta uma forma de compartilhar coisas de entretenimento, de futebol, até coisas mais sérias, como artigo de jornal, áudios, comentários mais sérios. Quem usa o WhatsApp já tem uma expectativa daquilo que eles vão receber e compartilhar, ainda mais depois de 2018, quando essa rede levou essa reputação de que é uma ferramenta de distribuição de fake news. Já no Instagram não há essa expectativa. O engajamento dos usuários com Instagram é mais de entretenimento, de passatempo. Então, com essa atitude um pouco mais ingênua, podemos estar consumindo uma desinformação sem perceber, ou seja, o nosso senso crítico não estar tão atento quanto está, por exemplo, com o WhatsApp. As pessoas que estão arquitetando as próximas promoções de fake news sabem disso, e sabem desta ingenuidade em torno desta rede. Por isso, é um campo fértil para o consumo de notícias falsas.
A ferramenta do “stories” do Instagram ajudou a ampliar essa rede para mais de 1 bilhão de usuários. Como o stories pode ser usado para propagar falsidades na campanha eleitoral?
Antes, o engajamento principal do Instagram era visual, de imagem. A lógica era apenas a seguinte: você postava uma foto, seus amigos curtiam ou comentavam. No stories, o engajamento é um pouco maior. Você pode fazer pesquisas, tem as enquetes, estimula os seus seguidores a darem opinião, se relaciona mais proximamente com eles. E ainda tem a questão do texto, ali pode ser feito o compartilhamento de uma informação mais detalhada em forma de texto. Além de tudo isso, ainda há a possibilidade de se compartilhar link ativo nos stories. Sem contar a questão do vídeo. O grande receio hoje em dia são os deepfakes, que são, por exemplo, vídeos alterados por meio de algoritmos de inteligência artificial e do uso de computação gráfica. Com essa técnica, é possível pegar a imagem de uma pessoa, alterar a sua voz e colocar na boca dela aquilo que ela nunca falaria.
Os deepfakes têm a capacidade de tornar ainda mais sedutora uma mensagem que já é falsa. E tem um certo profissionalismo por trás disso.
Sim, porque fica cada vez mais difícil você identificar se uma coisa é real ou não. Confunde bastante. Às vezes, vemos um meme malfeito, com uma imagem ruim. A gente consegue perceber de cara que é um conteúdo questionável. Quando você pega um vídeo extremamente bemfeito, com áudio, é difícil, em geral, para as pessoas compreenderem o que é um vídeo manipulado e tomam aquilo como verdade.
É possível medir o real efeito das fake news? Isso pode mesmo mudar o rumo de uma eleição?
Pelo que percebo com base em pequisa, a resposta simples é não. Pelo que já estudamos, por exemplo, na eleição de 2018, quando Bolsonaro se elegeu, é possível afirmar que ele levaria a vitória com ou sem fake news. Na verdade, as fake news contribuem para alimentar ainda mais a hiperpolarização da nossa sociedade. Na nossa ainda jovem democracia, nunca estivemos tão divididos e tão polarizados. Isso sim é um efeito da desinformação, das fake news. Um fenômeno que tenho notado a partir da última eleição, e que não foi visto em eleições anteriores, é que há uma manutenção de uma base pro candidato Bolsonaro por meio de redes de desinformação. Até recentemente, você tinha uma base que produzia fake news, mas terminava assim que passava a eleição. Hoje o que se vê é a continuidade desta base.
O ambiente político tumultuado favorece ainda mais aqueles que se valem da distribuição de fake news?
Um dos objetivos de se criar esse ambiente conturbado é a construção social de um inimigo. Agora, Bolsonaro constantemente cria um inimigo. Ele precisa disso para manter a base eleitoral fiel a ele. Um inimigo atacando Bolsonaro é automaticamente como um inimigo da pátria. É assim que ele mantém uma base unida e fiel a ele.
Nos Estados Unidos, onde o senhor mora, houve um processo marcada pelas fake news em 2016. O que o senhor está vendo na campanha que vai ganhar fôlego em breve?
Olha, está até um pouco estranho essa questão aqui porque ainda não estamos vendo muito coisa em matéria de fake news. Em 2016, quando houve a disputa entre (Donald) Trump e Hillary (Clinton), a desinformação aconteceu no Facebook. E como essa plataforma consegue ter controle de conteúdo, coisa que o WhatsApp não consegue, é possível afirmar que muita coisa foi feita para tentar conter a distribuição de fake news. Claro, muita coisa foi feita, mas falta muito ainda para ser feito. É interessante ver aqui qual a direção que as fake news vão tomar. Ainda não estou vendo muita coisa, vai acontecer. Acredito que as coisas vão esquentar mesmo quando o candidato do Partido Democrata for escolhido.