Saudado como avanço no combate à falta de segurança e à impunidade, o pacote anticrime que entrou em vigor tem o apoio de delegados de polícia e promotores de Justiça. O entusiasmo é motivado essencialmente por endurecimento de penas, restrição para progressão de regime e ampliação da possibilidade de transferência de líderes de facções criminosas.
Porém, o novo conjunto de leis penais tem uma série de ressalvas entre advogados criminalistas ligado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), entidade que reúne cerca de 3,5 mil profissionais do setor no país. Presidente do IBCCrim, a advogada e professora de Direito Eleonora Nacif reconhece avanços pontuais, mas avalia que a lei não irá resultar na redução da criminalidade.
Um dos pontos mais polêmicos do pacote é a criação do juiz de garantias. O ministro Luiz Fux suspendeu a aplicação por tempo indeterminado. Já se fala em engavetamento da proposta. A senhora acredita nisso?
A suspensão é fruto de uma liminar, de uma ação direta de inconstitucionalidade movida por algumas entidades e magistrados. A primeira decisão do ministro (Dias) Toffoli (de dar prazo de 180 dias para a implantação), a meu ver, era uma forma de criar um período de transição. Depois veio a decisão do ministro Fux, cuja fundamentação me parece menos preocupada com essa transição e realmente preocupada em barrar o juiz das garantias. Ainda acredito que a gente possa ter uma leitura de que isso é apenas um cuidado com uma transição, um período de adaptação, com questões orçamentárias do Poder Judiciário, para que todas as comarcas possam ter um juiz de garantias. O Brasil é enorme, temos milhares de comarcas, isso precisa ser adaptado. Se a preocupação do ministro Fux é com a implementação, ficaremos atentos para que a lei possa aos poucos se fazer valer.
A decisão de Fux desrespeita a vontade do Congresso, que aprovou a medida, e o presidente, que transformou em lei ao sancionar o projeto?
Sim, desrespeita o texto aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente. Especialmente pelo fato de que prorroga a implementação do juiz de garantias por prazo indeterminado. Paralelamente, há um grupo de trabalho sobre o tema no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Creio que terá papel importante para pressionar que a matéria seja levada ao plenário o quanto antes. Aí, sim, teremos uma oportunidade concreta de reverter essa decisão.
A senhora vê algum ponto negativo no pacote?
Diversos. Diria até que a maioria. O primeiro é a própria técnica de reforma legislativa. Mais uma vez, temos uma minirreforma do Código Penal, do Código de Processo Penal e da legislação penal. O mais racional, técnico e adequado seria que fosse feita uma reforma global, e não mais uma pontual que faz um puxadinho na legislação.
A previsão do juiz de garantias é um avanço. É algo que se harmoniza com uma tendência mundial
O que a reforma global traria?
Poderia condensar todas as leis em um código penal, mais organizado, em capítulos próprios. O Código Penal de Processo é de 1940. Está absolutamente desatualizado.
Pode dar um exemplo?
Esse entendimento que vem desde a década de 1990 de endurecimento penal. Após a Constituição Federal, tivemos uma série de leis que endureceram penas e dificultaram as pessoas do cárcere, gerando uma situação de encarceramento em massa. O que está desassociado da realidade é essa falta de visão humanística, pano de fundo da Carta da República que se revela no artigo 1º, quando fala da dignidade humana, bem como no artigo 5º, inciso 47, que proíbe pena de prisão perpétua, penas cruéis, penas de banimento, de trabalhos forçados. Isso tudo acaba sendo desconsiderado quando tem uma série de leis que aumentam penas e dificultam a saída do cárcere em detrimento de um olhar mais humanista e que acaba apenas fortalecendo o crime organizado, fortificando o erro judiciário, que é algo gravíssimo. A gente precisa de uma reforma para tornar o Direito Penal e Processual Penal mais constitucional, que tenha esse olhar para a Carta da República. Infelizmente, caminhamos na contramão disso tudo.
Quem defende o pacote diz que essa era a reforma possível dentro das circunstâncias.
A previsão do juiz de garantias é um avanço. É algo que se harmoniza com uma tendência mundial. A gente tem também avanços, por exemplo, na questão da videoconferência, que não foi tão alargada na lei, depois de aprovada, como o projeto inicial gostaria. O projeto propunha, por exemplo, mecanismos que permitiriam gravar e interceptar conversas de advogados com presos, e isso é obviamente inconstitucional. Querem desumanizar ao máximo a pessoa que está presa. Isso é feito, com essa tentativa frustrada de monitorar conversas com advogados, mas continua com monitoramento de conversas com familiares, com outras pessoas, bem como audiências por videoconferência no Regime Disciplinar Diferenciado, entre outras situações, quando o juiz entender que não é possível realizar o interrogatório por outros meios.
Um dos elogios ao pacote é que deixa a lei penal mais clara.
Existem vários pontos reprováveis nessa lei, mas em termos de deixar a lei mais clara, podemos destacar alguns pontos. Por exemplo: alguns crimes, que antes eram de ação pública incondicionada, passaram a ser de ação penal condicionada à representação, como crime de estelionato. Isso é elogiável, deixa a lei mais clara no sentido de que não é automático o trâmite do processo de um acusado por um crime de estelionato, por exemplo. É algo que vai depender de representação. Tem outra medida que também merece destaque que é o fato de que os juízes e as juízas em geral têm de revisar a decisão que decretou a prisão preventiva a cada 90 dias. Isso deixa mais claro os fundamentos que levaram à segregação de determinada pessoa, porque o magistrado precisa justificar a manutenção da prisão preventiva sob pena de tornar aquela prisão ilegal. Isso ajuda a esclarecer essa nova fundamentação para mostrar por que a pessoa deve permanecer presa, não com os argumentos do início, quando da decretação da prisão.
O maior símbolo de que a lei penal fica mais dura é o aumento, de 30 para 40 anos, do tempo máximo de permanência de um condenado na prisão. Outra novidade é que o condenado pelo júri passa a cumprir pena imediatamente e há novas regras mais rigorosas para progressão de regime. Isso reduziria a sensação de impunidade. A senhora não concorda com esse argumento?
Não, não concordo. Até porque o Brasil pune muito e prende muito. O problema é que prende mal. Esse aumento da pena máxima de 30 para 40 anos, que acabou gerando a alteração do artigo 75 do Código Penal, que anteriormente previa período de confinamento máximo de 30 anos, é muito grave. E uma das justificativas é que a expectativa de vida dos brasileiros aumentou. Essa colocação do ministro Alexandre de Moraes, que começou a discutir essa mudança, não se sustenta. Não importa se a expectativa de vida aumentou ou não. Trinta anos é muito. E quando se pensa na pessoa que está presa, e isso a gente observa facilmente, quem conhece o sistema prisional, as pessoas que lá estão envelhecem mais rápido, começam a se deteriorar, tanto emocionalmente quanto fisicamente. Esse aumento para 40 anos foi, de fato, um erro. Gera uma falsa sensação de combate à impunidade.
O Brasil prende muito e prende mal, esse é que é o problema. E além disso, como já citei, a nossa Carta da República, o nosso legislador constitucional, ele apostava no ser humano, é uma Constituição cidadã, baseada no princípio da humanidade. É proibida a pena perpétua, e a gente aumenta a pena de 30 para 40 anos, a depender da idade, da situação física e emocional daquela pessoa. A gente se depara com uma pessoa que pode, inclusive, morrer na prisão. São diversas as que nem chegam a sair do cárcere porque adoecem, a assistência-saúde dentro do cárcere é terrível, os concursos públicos para médicos que vão atuar no sistema prisional muitas vezes não são preenchidos, é um descaso total com quem lá está e com a saúde. Quando a gente pensa que a Constituição prevê a proibição de penas cruéis e perpétuas, o que se percebe é que temos um sistema prisional extremamente cruel, absolutamente inconstitucional.