
Pesquisadores de universidades do Rio Grande do Sul e do Uruguai reuniram esforços para iniciar um projeto de três anos com o objetivo de ampliar a identificação de microplásticos no sedimento fino, caracterizado pela lama, e na superfície aquática das lagoas dos Patos e Mirim. Ambas costeiam o território gaúcho, enquanto a Mirim ainda se estende às margens uruguaias.
Estudos já realizados nos últimos cinco anos indicam que elas continham microplásticos. O projeto Anthroplast pretende dar o passo adiante: com um número inédito de amostras, coletadas entre o final de março e o início de abril em pontos até então insondados, o objetivo é detalhar o nível de contaminação, datar a época de depósito dos resíduos no sedimento e identificar a origem, ou seja, por quais bacias e rios eles escoaram até as lagoas.
Especialistas afirmam que a presença do microplástico em águas naturais, em animais e até no corpo humano é objeto de crescente interesse da ciência mundial, com análises sobre riscos ao meio ambiente, às cadeias alimentares e, possivelmente, à saúde humana.
A identificação desses resíduos em sedimentos mundo afora, como no Lago Crawford, no Canadá, levou a comunidade científica a debater a abertura de uma nova época geológica, o Antropoceno, caracterizado pela transformação do planeta por ação humana. A oficialização de um novo intervalo de tempo geológico foi rejeitada até o momento por cientistas, mas as pesquisas seguem elaborando estudos que subsidiem a discussão.

O que é microplástico
Microplásticos são partículas de plástico que medem entre um micrômetro (0,001 milímetro) e cinco milímetros de comprimento, conforme classificação internacional. Os maiores microplásticos possíveis, de cinco milímetros, equivalem a meio centímetro.
Eles podem ser percebidos pelo olho humano quando têm entre um e cinco milímetros. Quando menores, somente podem ser vistos com lupa, destaca a bióloga Carolina Rodriguez Pérez, pesquisadora do Anthroplast.
Um microplástico encontrado com frequência é o secundário. Ele é uma minúscula parte que se fragmenta de embalagens e sacolas.
— Todo o plástico, quando chega num corpo d’água, em contato com sol e ondas, se quebra mais rápido. O processo gera os microplásticos — destaca Carolina.
De onde vêm, para onde vão
Muitos dos microplásticos vêm de polímeros sintéticos como o polietileno e o polipropileno, encontrados na composição das embalagens cotidianas. Ambos têm densidade menor do que a água. Por isso, costumam flutuar.
Um dos problemas, descrevem os cientistas, é que os microplásticos interagem e agregam outros químicos e microrganismos, como algas, fungos e bactérias. Isso é chamado de "plastisfera". O fenômeno torna o microplástico mais pesado a ponto de afundar e encontrar o sedimento do fundo, penetrando ao longo do tempo e alterando as características geológicas.
Outro tipo de microplástico é o primário: de tamanho muito pequeno desde a fabricação. Ele pode ser encontrado em esfoliantes e no vestuário de tecido sintético, por exemplo. Na lavagem da peça em máquina de roupa, o microplástico se desprende e é carregado pelo esgoto até rios e lagoas.
Pesquisadores destacam outra característica dos plásticos que geram os microplásticos: na fabricação, sofrem adição de químicos, como corantes e estabilizantes, o que os torna potencialmente danosos para o meio ambiente, peixes e pássaros.
Amostras coletadas nas lagoas dos Patos e Mirim
O Anthroplast é uma colaboração entre pesquisadores do Centro Universitário Regional Este (Cure), do Uruguai, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com financiamento do Office of Naval Research, dos Estados Unidos.
Entre 25 de março e 5 de abril, a bordo da lancha Larus, da Furg, os pesquisadores percorreram dois trechos fazendo coletas de lama e de água superficial.
A primeira missão da embarcação foi de Rio Grande a Porto Alegre, atravessando a Lagoa dos Patos, onde foram coletadas quatro amostras de sedimentos. A segunda volta partiu desde o Rio Grande até a porção sul da Lagoa Mirim, por meio do Canal São Gonçalo, com mais seis coletas de material lamoso.
As 10 amostras recolhidas são o dobro do que as realizadas pelas mesmas universidades e pesquisadores envolvidos na última meia década, informa Elisa Helena Fernandes, professora titular do Instituto de Oceanografia da Furg e coordenadora-adjunta do Anthroplast.
— Identificamos microplásticos nos primeiros esforços e propusemos um projeto mais amplo nas lagoas. Já temos segurança para afirmar que a contaminação existe, tanto no sedimento quanto na água, e com o Anthroplast vamos expandir a descoberta — comenta Elisa.
As amostras serão enviadas para análise na Universidade de Massachusetts, nos Estados Unidos. Serão aplicados raios X, testes de datação e análise de todos os centímetros do material coletado: cada coluna de sedimento soma três metros. Os estudos terão capacidade de identificar a presença de microplásticos e outros contaminantes, além de um apontamento sobre desde quando encontram-se depositados na natureza.
Elisa destaca que outro objetivo é relacionar o microplástico mapeado com os nichos econômicos, desde a indústria e a atividade portuária até a agricultura.
— É a primeira vez na história que se faz pesquisa científica, reunindo Brasil e Uruguai, estudando em conjunto os sistemas Patos e Mirim, que são conectados pelo Canal São Gonçalo. Queremos inferir quando foi a primeira contaminação por microplástico nas lagoas. É importante conhecer o início e como foi o desenvolvimento histórico — afirma Felipe Garcia-Rodriguez, paleolimnólogo e coordenador do Anthroplast.
A paleolimnologia é um método científico multidisciplinar que permite identificar mudanças ambientais com base em testemunhos sedimentares. Sondagens iniciais, destaca Garcia-Rodriguez, sugerem que os microplásticos começaram a se instalar no sistema Patos-Mirim na década de 1970.
A previsão é de que os pesquisadores façam nova rodada de coleta nas duas lagoas em 2026, com mais análises de laboratório. No último ano do projeto, em 2027, o cronograma projeta a análise de resultados e redação de artigos científicos.
Como é a coleta do sedimento
A captura do material em estado de lama no fundo das lagoas não pode ser feita em ponto aleatório. Os ambientes propícios foram mapeados pelos pesquisadores. O adequado é retirar as amostras dos chamados depocentros, bancos de areia com sedimentos finos.
A coleta é feita com o testemunhador: uma peça de aço-inox e chumbo de cerca de 80 quilos que fica no topo da engenhoca. Junto dessa peça, apontando para baixo, é atado um cano espesso de PVC, contendo três metros de comprimento. A extremidade inferior do cano é amolada, de forma a adquirir fio cortante.
Nas coletas do Anthroplast, o testemunhador foi amarrado e suspenso sobre a água por um guincho da lancha Larus. Depois, ele submergiu, conduzido pelas amarras até o sedimento, onde a extremidade afiada do cano perfurou o depocentro por gravidade. Quando o cano de três metros foi preenchido por sedimento, a peça de aço-inox e chumbo acionou o dispositivo de vácuo. Isso impede que o material coletado escorregue pela boca do cano no regresso do testemunhador à superfície.
De volta à lancha, a extremidade aberta do PVC é lacrada, e o material fica apto a ser enviado à análise.
— A coleta tem de ser feita em sedimento lamoso porque ele é fino e coeso. Isso preserva a estrutura. O material arenoso esfarela e prejudicaria a análise — detalha Elisa.
Manter a estrutura é importante para que a pesquisa consiga detectar, no raio X, o nível de penetração dos microplásticos e o marco temporal ao qual correspondem. Exemplo: um microplástico no fundo do cano de três metros pode datar a década de 1980, enquanto outro resíduo no alto do testemunhador indica uma contaminação mais recente.
A coleta de microplásticos suspensos na água é feita com uma rede específica, puxada pela lancha do experimento.
Os riscos ao ambiente e o cenário da pesquisa no mundo
A reportagem ouviu três especialistas que não participam do projeto Anthroplast para buscar análises sobre a relevância e a atualidade de pesquisar a presença dos microplásticos em corpos d’água e seus efeitos no ambiente natural. Eles foram unânimes: se trata de um dos principais assuntos da ciência internacional no momento.
— A pesquisa do microplástico é mundial. Ele já foi encontrado no cérebro humano, leite materno, placenta e espermatozoide. É onipresente. Está em todas as amostras. Existe há muito tempo, mas hoje temos pesquisas avançadas que comprovam a existência e o fato de estarmos com maior contato — diz Andreia Fernandes, coordenadora do Laboratório de Processos Ambientais e Contaminantes Emergentes (Lapace) da UFRGS.
Não há consenso e evidências irrefutáveis sobre efeitos nocivos dos microplásticos e seus componentes químicos à saúde humana, embora cientistas estejam buscando aferir eventuais riscos. Para os animais, pesquisadores citam uma série de estudos comprobatórios. Peixes confundem microplásticos com alimento, assim como pássaros que avistam os resíduos flutuantes.
— Animais se alimentam nos mares e lagoas. O pássaro morre por falsa sensação de saciedade. Come microplástico e não consegue evacuar. Muita coisa fica no sistema digestivo, e ele não sente fome. O mesmo acontece com peixes — afirma Andreia.
Professor do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Marcelo Pompêo conduz pesquisas sobre a presença de microplásticos em reservatórios de água no centro do país. Ele exemplifica outra consequência da contaminação em corpos hídricos: o zooplâncton, organismo que vive em suspensão no ambiente aquático, come microplástico e tem seu ciclo de vida encurtado, com menor crescimento e reprodução da espécie. O zooplâncton é alimento para peixes maiores.
— Isso pode vir a afetar um estoque pesqueiro — comenta Pompêo.
O pesquisador destaca que o humano não escapa ao microplástico, motivo que levou cientistas a mapearem a presença do resíduo no corpo e no sangue.
— Uma garrafa pet passa por degradação, fica cada vez menor, até que não conseguimos mais enxergar. Estudos já identificaram o microplástico na água potável. Mesmo em pequenas quantidades, encontramos hoje em todos os lugares. Existe uma conversa mundial sobre tentar reduzir o consumo do plástico — destaca Pompêo.
Paulo Boggiani, professor do Instituto de Geociências da USP, reforça a capacidade do microplástico de absorver elementos nocivos no ambiente, como fungos e bactérias.
— Está sendo muito estudado. Tem a importância científica, para entendermos a influência do humano na terra, e a ambiental. Isso leva as pesquisas a não serem feitas só em sedimento, mas também na água. O mais importante do estudo científico é convencer a humanidade a fazer a sua parte — analisa Boggiani.
A discussão sobre o Antropoceno
Em 2024, cientistas da União Internacional de Ciências Geológicas votaram sobre a possível abertura do Antropoceno. Seria um novo intervalo do tempo geológico, marcado por transformações no planeta decorrentes da ação da humanidade. O escrutínio rejeitou o início do Antropoceno, o que determinaria a mudança de parâmetros científicos e até dos livros didáticos de História e Geografia.
Uma das dificuldades para marcar o Antropoceno é que a ciência exige a definição de um marco zero que caracterize o novo período. Os geólogos não chegaram a um consenso quanto a isso. O tempo geológico da atualidade continua sendo o Holoceno, iniciado há mais de 11 mil anos, após o último período glacial.
— Cientistas saíram à procura de evidências sobre quando e o que marcaria o início da influência do ser humano na Terra. Uma possibilidade seria a Revolução Industrial, quando começamos a queimar combustíveis fósseis. Outra seriam as explosões atômicas da Segunda Guerra. E outro marcador do Antropoceno seria o microplástico na Lagoa Crawford, no Canadá. Prevaleceu entendimento de que não seriam marcadores fiéis — afirmou Boggiani.
Pompêo destaca que a ciência esbarra em divergências para fazer a marcação de novo tempo geológico, apesar de o termo já ter sido incorporado na sociedade.
— O Antropoceno ainda está em dúvida do ponto de vista científico, mas, do ponto de vista coletivo, já pegou. A palavra ficou. É o momento do homem como principal agente transformador do planeta, com suas máquinas e tecnologias — destaca Pompêo.
Nenhum dos pesquisadores ouvidos pela reportagem defende a abolição do plástico. Eles ressaltam a necessidade de encontrar meios de reduzir a dependência — sobretudo dos de uso único, como copos e sacolas — e de ampliar a reciclagem.
— Não queremos colocar uma cruz sobre o plástico. Queremos detectar as responsabilidades de cada um e discutir mitigação de danos. Hoje se passa a responsabilidade ao consumidor final, mas a indústria também precisa ter a sua parcela — afirma Carolina, pesquisadora do Anthroplast.