O Rio Grande do Sul, que já é o Estado com mais sítios arqueológicos no Brasil, pode aumentar ainda mais o número de espaços registrados. A força da água da enchente de setembro e novembro de 2023 e de maio de 2024 no Vale do Taquari destruiu vegetações e edificações, revelando materiais que podem pertencer a povos indígenas Guarani da antiguidade. Pesquisadores da Universidade do Vale do Taquari (Univates) e de instituições de Pelotas, Santa Catarina e Argentina irão a campo nas próximas semanas para investigar as descobertas, que podem ter três mil anos de idade.
Desde as cheias do ano passado, agricultores de Roca Sales e de outros municípios da região têm encontrado materiais arqueológicos nas suas propriedades. Neli Teresinha Machado, arqueóloga e professora da Univates, conta que a instituição pediu autorização do Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para fazer a escavação dos locais. A portaria que permite o estudo deve ser publicada no início desta semana, garante o superintendente do Iphan-RS, Rafael Passos. Só então os pesquisadores poderão conferir quais itens foram encontrados.
— Isso é muito normal. Depois de enchentes, sempre aparece material arqueológico. O solo fica descoberto e aparece material no interior das propriedades. Normalmente, os proprietários nos chamam para olhar. Dessa vez, aconteceu que tiveram curiosos, que não são arqueólogos, indo lá para escavar a área e retirar os materiais ilegalmente — relata Neli.
A Lei 3.924, de julho de 1961, estabelece que é proibida a retirada de materiais arqueológicos do território nacional sem autorização do Iphan. É por conta desses relatos e do medo de outra enchente que o pedido para escavar os novos pontos mapeados no Vale do Taquari está sendo tratado pelo Iphan como uma autorização para salvamento emergencial. Recebem essa classificação as solicitações de intervenções que precisam ser realizadas com urgência para preservar e resgatar bens culturais em situação de perda, destruição ou deterioração.
— Primeiro eles vão fazer o mapeamento e o registro de novos sítios arqueológicos Guarani nas margens dos rios Taquari, Antas e Forqueta. É um território que abrange 12 municípios. Vão fazer, também, a avaliação do grau de preservação dos sítios já cadastrados, priorizando os locais impactados pelas cheias. Vão realizar o salvamento de sítios que apresentem alto risco de destruição em função do já ocorrido ou de um potencial dano com eventuais novas cheias — explica Passos.
O Brasil conta com 37,2 mil sítios arqueológicos cadastrados no Iphan. Desses, 4,1 mil são no Rio Grande do Sul – nenhum Estado tem maior número. Além do Vale do Taquari, há sítios em pelo menos outras dez regiões. Mapear novas áreas é uma tarefa comum dos arqueólogos gaúchos, pontua Passos. Só entre 2023 e 2024, 163 novos sítios arqueológicos foram cadastrados no Estado.
Descobertas
Os materiais encontrados nesses processos serão retirados e enviados para o laboratório da Univates, onde serão estudados. Neli aponta que alguns estudos podem levar anos e até décadas para serem finalizados. A Univates deverá ser a fiel depositária designada pelo Iphan para guardar, conservar e proteger os materiais encontrados. Segundo a arqueóloga, algumas peças poderão ser exibidas em exposições de museus da região no futuro.
— Esperamos encontrar as mesmas coisas de sempre. Os materiais dos Guarani costumam ser cerâmicas, feitas de argila, como panelas e vasilhas, e material lítico, que é pedra lascada ou polida. Pode ser que encontremos pedaços de machadinhas ou lascas, porque esses povos eram agricultores e plantavam muito milho, mandioca e batata. Então os raladores deles eram feitos com micro lascas de calcedônio ou quartzo. Pode ser que encontremos moedores para moer sementes e sepultamentos — prevê a professora.
Ela ressalta que a expectativa é de que os sepultamentos não tenham sido destruídos pela força da água ou pela população, porque os pesquisadores consideram esses materiais interessantes de serem analisados. Neli conta que há dois tipos principais que costumam ser encontrados: um é o enterramento direto, no chão, e o outro é o enterramento na vasilha, que era quando os indígenas colocavam alguns ossos em um pedaço de cerâmica e cobriam antes de enterrar.
— O mais importante dessas descobertas é que ter conhecimento de que civilizações antigas viveram na região muito antes dos colonizadores chegarem, que esse território é indígena. Hoje, na contemporaneidade, temos a tendência de negar muito a história mais antiga. E conseguir trazer à tona esses dados que revelam e que provam que civilizações inteiras viviam na região e tinham total domínio tecnológico do espaço é o mais relevante — pontua a arqueóloga.
Neli acredita que alguns itens podem ser mais antigos do que os materiais já encontrados na Amazônia. Para ela, essas descobertas revelam partes de uma história que nunca foi escrita e, por isso, são tão importantes para o entendimento das raízes do Rio Grande do Sul. A ideia é que os estudos possam apresentar mais detalhes sobre a vida organizada e adaptada das populações indígenas no Vale do Taquari.