
Na tarde da última terça-feira (25), uma menina de nove anos saiu de casa para brincar na pracinha que fica a poucos metros de onde mora. Cerca de 45 minutos depois, a mãe da criança suspeitou da demora e foi atrás da filha.
Após uma noite intensa de buscas pela comunidade, com divulgação nas redes sociais, uso de carro de som e análise de câmeras de monitoramento, a Brigada Militar descobriu que a menina havia sido sequestrada e presa por cerca de 18 horas em um fosso subterrâneo em uma mercearia que fica em frente à pracinha.
O caso aconteceu em Tramandaí, no Litoral Norte, e ganhou repercussão nacional. A investigação da polícia aponta que o proprietário do local, Marco Antônio Bocker Jacob, 61 anos, atraiu a menina para os fundos da loja, onde a prendeu, agrediu e abusou sexualmente. O suspeito foi morto em espancamento pela população durante o resgate da menina.
O inquérito, conduzido pelo delegado Alexandre Souza, deve ser concluído em até 30 dias com a extinção de punibilidade em razão do óbito do homem apontado como responsável pelo crime. Se estivesse vivo, ele seria indiciado por cárcere privado, estupro de vulnerável e lesão corporal.
Mas esse não é um caso isolado. Só no mês passado, foram registradas 256 denúncias de estupro de vulnerável no Rio Grande do Sul — uma média de oito ocorrências por dia. Em janeiro de 2024, houve quase o dobro de denúncias, com 401 registros no Estado.
Em fevereiro de 2024, uma bebê de um ano de idade morreu com sinais de abuso sexual e agressões pelo corpo. O caso aconteceu no bairro Lomba do Pinheiro, na zona leste de Porto Alegre. A investigação apontou o padrasto da menina, um homem de 22 anos, como suspeito pelo crime. Na última terça-feira, mesmo dia do desaparecimento da menina de Tramandaí, a 4ª Vara do Júri da Comarca de Porto Alegre condenou o homem a 67 anos e 10 meses de prisão pelo estupro e assassinato da criança.
Esse caso figura entre as 3.995 denúncias de estupros de vulneráveis registradas no Rio Grande do Sul no ano passado — uma média de 11 ocorrências por dia. O dado enviado pela Secretaria da Segurança Pública do RS (SSP) a pedido de Zero Hora aponta que a cada duas horas, em média, um caso de estupro contra criança ou adolescente foi reportado às autoridades gaúchas em 2024.
Apesar do volume expressivo de delitos deste tipo, em relação a 2023, quando houve 4.442 denúncias registradas no RS, 2024 teve redução de 10% nos casos. Já na comparação com 2019 — no período pré-pandemia — quando houve 3.875 denúncias, o volume registrado no ano passado representa aumento de 3%.
Nos últimos seis anos, 2022 foi o que teve mais denúncias, com 4.560 registros. O mês de outubro daquele ano foi o líder em número de denúncias, com 424 ocorrências.
Crime e pena prevista
O artigo 217-A da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, caracteriza estupro de vulnerável como "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos". A pena prevista para este tipo de crime é de oito a 15 anos de reclusão.
Além dos casos em que o ato sexual é consumado com a vítima, há uma série de comportamentos inadequados que podem configurar estupro de vulnerável, como:
- Toques
- Carícias
- Manipulação de órgãos genitais
- Exposição da criança a materiais pornográficos
Como ocorre a investigação
Diretor da Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) de Porto Alegre, o delegado da Polícia Civil Raul Vier explica que nem todas as ocorrências registradas por estupro de vulnerável resultam em um inquérito concluído com indiciamento. No entanto, todas as denúncias são investigadas pela polícia.
Segundo ele, parte dos casos pode acabar sendo enquadrada em outra tipificação criminal ou mesmo sendo descartada após apuração e realização de perícias.
O delegado comenta que as denúncias chegam à Polícia Civil por diferentes canais, seja por um relato presencial na delegacia, uma solicitação do Judiciário, do Ministério Público, de alguma instituição de saúde ou mesmo da escola, quando há a suspeita de algum caso de abuso contra a criança ou adolescente.
— A criança geralmente é encaminhada para perícia física e psíquica, ouvimos testemunhas, ouvimos suspeitos, todas as pessoas envolvidas que estão por perto. Coletamos imagens de câmera, registros de celulares apreendidos, HDs. Quando a gente conclui que o fato aconteceu em determinada circunstância e que o autor é aquela pessoa que identificamos acontece o que chamamos tecnicamente de indiciamento — explica.
O delegado ressalta a importância dos laudos produzidos pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP). Vier pontua que quando há elementos que apontem para um suspeito em potencial, pode ser pedida a sua prisão à Justiça. Quando o inquérito é concluído com o indiciamento, ele é encaminhado ao Judiciário, onde o Ministério Público pode denunciar o suspeito, que, com a denúncia aceita, se torna réu.
Atendimento especializado
A menina vítima do sequestro e abuso em Tramandaí foi encaminhada para Porto Alegre para receber atendimento especializado no Centro de Referência no Atendimento Infantojuvenil de Porto Alegre (Crai), que trata crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
O espaço, que foi criado há 22 anos, é referência para outros Estados e funciona no sexto andar do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas. No local, são recebidas pessoas de até 18 anos vítimas de abuso sexual. Além da Capital, o serviço também existe em outros 17 municípios.
No Crai, a criança recebe atendimento especializado, fornecido por uma equipe multidisciplinar que oferece acolhimento, consultas psicológicas, serviço social, ginecologia, pediatria, perícias físicas e psíquicas. O método aplicado visa proteger a criança ou adolescente de sofrer uma revitimização, sendo obrigada a contar diversas vezes os detalhes do crime e revivendo o trauma sofrido.
Perigo dentro de casa
A promotora de Justiça Cristiane Corrales, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação, Infância e Juventude, destaca que os agressores geralmente são pessoas próximas das famílias das vítimas, o que dificulta a investigação dos casos. Ela acrescenta que essa proximidade costuma dificultar que as famílias percebam o risco ou mesmo que fiquem com medo de denunciar o abusador.
Esses crimes são praticados, na maioria dos casos, de forma intrafamiliar, ou seja, alguém da família, que tem um parentesco com a vítima, criança ou adolescente, ou que convive muito próximo dessa família
CRISTIANE CORRALES
Promotora de Justiça, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação, Infância e Juventude
Prevenção
Para a promotora Cristiane Corrales, a conscientização das crianças e adolescentes é uma ferramenta indispensável para o combate a este tipo de crime.
— A escola, a educação, é uma política pública que tem um papel muito importante no sentido de conscientizar crianças e adolescentes numa forma de comunicação compatível com a idade, que aquilo não é um carinho, que é uma violência, porque isso acontece desde a mais tenra idade das crianças — sublinha.
Ela destaca também a importância do fortalecimento dos serviços de saúde e educação, de onde vêm parte das denúncias. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que os profissionais da Educação, assim como os médicos, são obrigados a denunciar casos de suspeita ou confirmação de abusos contra criança ou adolescente.
O artigo 245 do ECA prevê multa de três a 20 salários de referência, podendo ser aplicado o dobro em caso de reincidência para quem não denunciar.
— Quando chega ao Ministério Público, rapidamente também ocorre uma atuação verificando que medidas protetivas são possíveis para que essa criança ou adolescente fique em segurança, evitando a revitimização. E para isso, nós precisamos que essa rede de proteção esteja capacitada sobre o papel de cada um, tenha uma comunicação célere, com canais de comunicação e fluxos pré-definidos de conhecimento de todos e funcionando — conclui.
Em dezembro do ano passado, o Ministério Público lançou o Projeto Mãos Dadas, que busca sensibilizar a sociedade gaúcha, a partir de campanhas de mobilização, divulgando o trabalho da rede de proteção e os canais de denúncia de violência contra crianças de adolescentes.
— Nós criamos no ano passado o projeto Mãos Dadas como uma forma de, num eixo, articular uma comunicação, mobilizar a sociedade, para que, em caso de presenciar ou de uma suspeita de violência contra crianças e adolescentes, que denuncie e não se cale, porque isso salva vidas — frisa a promotora.
Possíveis sinais de abuso
- Agressividade
- Baixo desempenho escolar
- Tristeza profunda
- Comportamentos sexualizados
- Perda de apetite ou compulsão alimentar
- Insônia, pesadelos frequentes ou querer dormir com a luz acesa
- Reação ao toque, como ao ser abraçado, por exemplo, e repúdio a alguma pessoa, como um familiar
Há ainda outros sinais físicos, que também podem ser percebidos:
- Hematomas no corpo da criança (especialmente nas pernas e barriga)
- Dor, inchaço, sangramento ou mesmo infecção na área genital
- Dor na barriga (pode ser um sintoma emocional) e dores no baixo-ventre
Fonte: Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca)
Como denunciar
- Disque 100: recebe denúncias sobre violência contra criança e adolescente em todo o país
- Brigada Militar: pode ser acionada pelo 190 em qualquer cidade do RS
- Polícia Civil: basta ir à delegacia mais próxima ou repassar a informação pelo telefone de forma anônima. É possível utilizar o Disque Denúncia pelo 181. A Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre atende pelo telefone 0800-642-6400
- Conselho Tutelar: denúncias são verificadas. Em Porto Alegre, há plantão na Rua Fernando Machado, 657, Centro Histórico, inclusive durante a noite e aos fins de semana. Em casos de emergência é possível ligar para os telefones (51) 3289-8485 ou 3289-2020. O endereço e telefone de cada uma das unidades podem ser conferidos neste link.