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O homem que perdeu a esposa, a única filha e a cunhada em um intervalo de horas tenta retomar a rotina com apoio dos amigos e do que restou da família. João Joaquim dos Anjos, de 70 anos, foi o único a não comer o bolo envenenado em Torres, no Litoral Norte do RS, em dezembro do ano passado. Conforme João, o neto sobrevivente, de apenas 10 anos, tem sido sua força diária para continuar.
A maior preocupação tem sido com o bem-estar do menino. Ele está bem, mas o avô teme os efeitos do arsênio, substância tóxica encontrada no bolo, além da saúde psicológica da criança daqui para frente.
— Ele é elo é que faz a gente andar. Meu neto é tudo que tenho. Ele dá força para a gente e parece um adulto, mas, às vezes, a saudade aperta, porque é uma criança — conta.
— Esses dias ele ficou deitado vendo TV comigo e começou a chorar. Perguntei o que que estava acontecendo e ele disse: "Saudade da minha mãe". Isso aí esmorece o cara. Fiquei um tempão conversando com ele, peguei um guaranazinho, ele tomou, se acalmou e disse: "Te amo, vô". Aquilo foi tudo. Se eu não tivesse ele, eu não sei se estaria aqui — desabafa João.
O advogado que representou Deise dos Anjos — apontada nesta sexta-feira (21) como a responsável por mortes por envenenamento de familiares —, Cassyus Pontes diz que sua cliente "estava sendo investigada por um fato, ainda sem relatório final, já com uma condenação por parte de uma instituição do Estado" e afirmava "que jamais colocou na farinha, que jamais usou no suco" o veneno encontrado pela perícia.
— São questionamentos que vão ficar eternamente. E nenhuma investigação, nenhuma decisão, nesse momento, vão mudar essa realidade — afirma o advogado.
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Três mortes e três hospitalizados
João era casado com Neuza Denize Silva dos Anjos, pai de Tatiana Denize Silva dos Anjos e cunhado de Maida Berenice Flores da Silva. As três morreram após comer o bolo em uma reunião familiar, realizada no dia 23 de dezembro. O cunhado Jeferson Luiz Moraes, a outra cunhada, Zeli Teresinha Silva Anjos, e o neto também comeram o doce. Eles chegaram a ser hospitalizados, mas receberam alta.
A suspeita de ter envenenado o bolo é Deise Moura dos Anjos, nora de Zeli. Deise foi encontrada morta dentro da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, na manhã do dia 13 de fevereiro. A hipótese é de suicídio, segundo informações da Polícia Penal.
Foi João quem fez as primeiras ligações por socorro e foi até o Corpo de Bombeiros pedir atendimento médico à família. Ele chegou a ligar para Serviço Móvel de Urgência (Samu), que exigiu o endereço exato de onde estava. Desesperado, João não conseguiu responder a todas às perguntas e saiu a pé, correndo em busca de ajuda.
— Eu não tinha terminado meu cafezinho. Cinco minutos. No momento que eles começaram a comer, já começaram a sentir aquele queimor. A Neusa não comeu uma fatia. Foi só um pedacinho que levou ela à morte — conta.
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Três meses antes, João perdeu o irmão
No dia 3 de setembro, antes da tragédia do bolo, João também perdeu o irmão e melhor amigo, Paulo Luiz dos Anjos. A causa, à época, foi informada como intoxicação alimentar. Em janeiro deste ano, o corpo de Paulo foi exumado. Exames comprovaram a presença de arsênio no organismo. Ele havia tomado um leite em pó contaminado pela substância. Deise, a nora de Paulo, é suspeita da morte.
— Nunca me mudei daqui. O Paulo (morava) ali no outro lado da rua. Onde um estava, o outro ia também. Se tinha um serviço para fazer, nós estávamos juntos — conta João.
Famílias conectadas
Primeiro foi Paulo que namorou com Zeli. Foi assim que João conheceu a irmã dela, Neuza. Em pouco tempo, a família estava ainda mais conectada, já que dois irmãos casaram com duas irmãs. Cada casal teve um filho e um neto.
— Sempre brincávamos. Eu dizia: "Eu tenho a guria que tu não teve", que era a Tati, e ele o guri que eu não tive, o Diego. Então, nós trocávamos, quando eu queria um guri, eu pegava o dele, quando ele queria uma guria, ele pegava a minha. Depois chegaram os netos, um para cada um — conta.
A aeroviária aposentada Regina dos Anjos da Silva, de 66 anos, é irmã de Paulo e João. Ela mora na residência ao lado, lembra da afinidade familiar e das vezes que saía a janela e ouvia as risadas dos parentes reunidos:
— Era a coisa mais linda de se ver, era um lugar com vida. Lá de casa só via as cabecinhas. O João não tomava chimarrão, mas era ele quem fazia. Às vezes, o Paulo até vinha também. Era sagrado, todos os dias. Aí agora, esse terreno não tem mais vida.
A retomada familiar
Com endereços muito próximos, a família dos Anjos se tornou conhecida e querida pela vizinhança. Paulo, João e outras irmãs têm construções em uma mesma rua de Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O município foi um dos mais atingidos pela enchente que assolou o território gaúcho, em maio do ano passado.
A casa de João ainda reflete as marcas da enxurrada. A água e a lama invadiram a residência, danificaram móveis, eletrodomésticos e quase apagaram os registros fotográficos de décadas. Sobraram álbuns com poucas fotos ainda identificáveis e o quadro de casamento dele e Neuza, uma lembrança de 31 de maio de 1980.
No mesmo terreno do casal, foi construída a casa onde viviam o neto, a filha Tatiana e marido Vandelci Marques da Silva, de 45 anos.
Hoje, em meio às perdas, sogro e genro compartilham o cuidado da criança, a reconstrução das estruturas e tentam seguir o legado de união familiar.
— A gente está juntando os cacos dia após dia. Difícil essa retomada da vida sem elas. Sempre foi uma família de muita afetividade, de encontros. Foi muita coisa ao mesmo tempo e ficamos perdidos, porque elas eram nossos esteios. A vida tem que seguir. O guri retoma as aulas em fevereiro e ele é tudo o que temos. Agora só peço que elas descansem em paz, que gente vai seguindo por aqui — desabafou Vandelci.