Uma das histórias mais emblemáticas da crônica policial gaúcha, o caso das mortes de quatro pessoas da mesma família envenenadas por arsênio tem lacunas que continuam em branco. Três das vítimas morreram após comer bolo de Natal e uma depois de ingerir leite em pó, em setembro do ano passado. A suspeita é Deise Moura dos Anjos, 42 anos, que está presa desde 5 de janeiro.
Em 23 de dezembro do ano passado, seis pessoas da mesma família precisaram de atendimento médico após comer fatias de um bolo de reis, doce tradicional das reuniões de fim de ano, em Torres, no Litoral Norte. Neuza Denize Silva dos Anjos, 65 anos, Maida Berenice Flores da Silva, 59, e Tatiana Denize Silva dos Anjos, 47, filha de Neuza, morreram.
O bolo foi preparado por Zeli Teresinha Silva dos Anjos, 61. Após comer duas fatias, Zeli passou mal e foi internada na UTI do Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres, onde ficou 19 dias. Um menino de 10 anos, neto de Neuza e filho de Tatiana, também ficou hospitalizado, mas foi liberado após alguns dias.
Jefferson Luiz Moraes, 60 anos, marido de Maida, foi liberado após atendimento médico. O marido de Neuza também estava na confraternização, mas não comeu o bolo.
Após as suspeitas da polícia sobre Deise, a investigação pediu a exumação do corpo de Paulo Luiz dos Anjos, marido de Zeli, que morreu em setembro. À época, a causa da morte foi atestada como intoxicação alimentar. Mas a exumação confirmou o arsênio como causa da morte de Paulo também.
Entenda o que falta ser esclarecido sobre o caso
Como o arsênio foi parar na farinha?
A análise pericial solicitada pela polícia apontou que havia níveis letais de arsênio na farinha usada no preparo do bolo. Segundo o Instituto-Geral de Perícias (IGP), o nível do veneno no ingrediente era 2,7 mil vezes maior do que a concentração encontrada no doce.
A investigação ainda não conseguiu apontar em que circunstância ou momento exato a substância foi colocada no ingrediente.
Segundo o delegado Cleber Lima, diretor do Departamento de Polícia do Interior (DPI), um depoimento-chave para compreensão dessa dinâmica será o de Zeli, que deve ocorrer nos próximos dias.
O que motivou o crime?
A Polícia Civil apurou que Deise tinha desavenças com a sogra há duas décadas, o que pode ter motivado o crime. Deise e o marido chegaram a se afastar da família dele por um tempo, mas nos últimos anos tentaram uma reaproximação.
Segundo a polícia, após as enchentes que atingiram o Estado em maio, Deise passou a visitar a casa da sogra em Arroio do Sal, no Litoral Norte, com maior frequência.
O saque de uma quantia de conta corrente de Deise e do marido, feita por engano pela sogra há 20 anos, teria sido o estopim de uma briga entre elas, o que gerou o afastamento.
Com Tatiana, que morreu envenenada, houve desentendimento porque Deise queria casar em uma determinada igreja, mas não gostou que pouco tempo antes Tatiana resolveu fazer a cerimônia no mesmo lugar.
A polícia caracteriza as pequenas desavenças familiares como "desproporcionais" à magnitude do crime cometido.
Depoimentos de pessoas próximas à família apontaram que ela dizia querer "ver familiares em caixão".
Deise não confessou ter cometido o crime nem quais seriam os motivos. Ela foi ouvida por cinco horas pela polícia, mas deve ser chamada para prestar novo depoimento logo após o marido e a sogra.
A reportagem tentou novo contato com a defesa de Deise nesta quarta-feira (15), mas não obteve retorno até esta publicação (leia mais abaixo).
Há outros envenenamentos?
A Polícia Civil analisa possível tentativa de envenenamento do marido e do filho de Deise. A investigação recebeu o relato de testemunha apontando que, em dezembro do ano passado, a suspeita teria supostamente envenenado suco de manga ingerido pelos dois.
— Estamos analisando essa situação ainda, mas a gente não consegue confirmar ainda sobre isso — diz o delegado responsável pelo caso, Marcos Vinicius Veloso.
O IGP recebeu na tarde de segunda-feira (13) os ofícios da polícia com solicitações de perícias laboratoriais em amostras de sangue do marido e do filho de Deise. O objetivo é verificar se há a presença de arsênio.
A expectativa da polícia é de que os resultados das análises laboratoriais sejam obtidos nesta semana. Na manhã desta quarta-feira (15), o IGP informou que "as perícias estão em andamento", mas "sem prazo".
O marido da suspeita sabia de algo?
Filho único de Zeli, o marido de Deise deve ser chamado a depor nos próximos dias na condição de testemunha, assim como a mãe. Ele não é investigado pelo crime.
Nos celulares apreendidos com Deise, a polícia identificou buscas feitas na internet por termos como "arsênio veneno", "arsênico veneno" e "veneno que mata humano". Uma das pesquisas foi feita, inclusive, quando ela estava na casa da sogra, no Litoral Norte.
Contudo, no celular do marido dela, nada foi encontrado até o momento, uma das razões pela qual ele não é considerado suspeito.
Em seu primeiro depoimento à polícia, em 27 de dezembro, o marido disse que a esposa tinha uma relação de altos e baixos com a sogra, como uma espécie de "eletrocardiograma". Entretanto, negou que a esposa fosse capaz de envenenar familiares.
Havia arsênio na comida e água levada ao hospital?
O Instituto-Geral de Perícias (IGP) está com alimentos e itens levados por Deise Moura dos Anjos para a sogra, Zeli dos Anjos, quando ela ainda estava internada no hospital de Torres. São produtos que se somam a uma garrafa d'água, levada no mesmo dia, e que serão analisados para identificar a presença de substâncias que possam causar envenenamento. O IGP espera concluir as primeiras análises ainda esta semana.
A lista de itens sob análise inclui quatro bombons, um pastel, uma garrafa de suco, um canudo, um chiclete, um pacote de biscoito, quatro barras de cereal e um mandolate. Nenhum dos produtos foi consumido ou utilizado por Zeli.
Ela recebeu a visita da nora enquanto estava internada após comer duas fatias de um bolo com uma farinha que continha arsênio. A visita aconteceu no dia 5 de janeiro, no Hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres, no Litoral Norte. Zeli recebeu alta no dia 10.
O que vai acontecer com quem vendeu o veneno?
A investigação apontou que Deise comprou arsênio pela internet e recebeu em casa pelos Correios. A nota fiscal da compra foi encontrada no celular dela. No documento, ela usou o nome Deise Marques dos Anjos, trocando seu sobrenome do meio. A polícia diz que ela também usou um CPF falso.
Segundo a investigação, Deise comprou arsênio quatro vezes em um período de cinco meses. Uma das compras ocorreu antes da morte do sogro — que morreu por envenenamento — e as outras três, antes do encontro familiar que acabou em três mortes, em Torres.
De acordo com o delegado Cleber Lima, uma nova investigação será aberta em torno da empresa que vendeu o arsênio. Contudo, ele não revela se é uma empresa nacional ou estrangeira. Ele também pontua que a discussão sobre a facilidade de acesso a esse tipo de substância é uma discussão a nível nacional.
O arsênio é utilizado para fazer arsênico, veneno para ratos e insetos, tem sua venda proibida no país desde 2005. As principais formas de se obter produtos com alta concentração de arsênio no Brasil são por comercialização clandestina ou em possíveis sobras ainda existentes de produção anterior à proibição.
A suspeita vai seguir presa?
Deise foi presa no dia 5 de janeiro, quando a polícia descobriu as pesquisas em seu celular sobre os efeitos do uso de arsênio.
Ela está detida no Presídio Estadual Feminino de Torres, onde ficará por 30 dias, a contar da data da prisão, por suspeita de triplo homicídio duplamente qualificado por motivo fútil e com emprego de veneno e tripla tentativa de homicídio duplamente qualificada.
A polícia avalia ainda a possibilidade de pedir a prorrogação da prisão temporária da mulher por mais 30 dias.
Contraponto
A reportagem tentou novo contato com a defesa de Deise nesta quarta-feira (15), mas não obteve retorno até esta publicação.
Em nota divulgada na última sexta-feira (10), a defesa de Deise disse que as declarações divulgadas pela polícia em coletiva de imprensa "não foram judicializadas no procedimento sobre o caso", portanto "aguarda a integralidade dos documentos e provas para análise e manifestação".
Nota da defesa na íntegra
O escritório Cassyus Pontes Advocacia representa a defesa de Deise Moura dos Anjos no inquérito em andamento sobre o fato do Bolo, na Comarca de Torres, tendo sido decretada no domingo a prisão temporária da investigada.
Todavia, até o momento, mesmo com o pedido da Defesa deferido pelo judiciário, ainda não houve o acesso ao inquérito judicial.
A família, desde o início, colabora da investigação, inclusive o com depoimento de Deise em delegacia, anterior ao decreto prisional.
Cumpre salientar, que as prisões temporárias possuem caráter investigativo, de coleta de provas, logo ainda restam diversos questionamentos e respostas em aberto neste caso, os quais não foram definidos ou esclarecidos no inquérito.