Acusada de ter aplicado injeções de silicone industrial no corpo de uma jovem e causado sua morte, uma mulher irá a júri nesta quinta-feira (8) em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo. Marcella de Sales, 40 anos, é ré por homicídio.
A vítima, a transexual Melani Aguiar, 20, morreu no fim de agosto de 2020, após se submeter ao procedimento realizado de forma clandestina.
A apuração da polícia na época descobriu que Melani viajou de Santa Maria, na Região Central, onde vivia com a família, para fazer a aplicação em Santa Cruz do Sul. Em 27 de agosto de 2020, foi hospitalizada após passar mal durante aplicação de silicone industrial — de uso proibido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) no corpo humano, por conta dos riscos.
Este produto, usado, por exemplo, na área mecânica e em construções, quando aplicado no corpo pode causar lesões e até o óbito. Foi o que aconteceu com a jovem.
Segundo a denúncia apresentada pelo Ministério Público (MP), Marcella, que vivia na Serra, teria viajado até o Vale do Rio Pardo para fazer a aplicação em Melani. A jovem morreu quatro dias depois, após ficar hospitalizada, vítima de uma síndrome séptica, que é a disfunção de múltiplos órgãos. O silicone, como é líquido, se espalhou por todo o corpo.
O entendimento da acusação é de que Marcella assumiu o risco de matar a vítima ao realizar o procedimento de forma clandestina, em local impróprio, sem formação profissional e conhecimento técnico na área de medicina. Em razão disso, ela responde pelo homicídio com dolo eventual.
Familiares da jovem viajarão da Região Central até Santa Cruz do Sul para acompanhar o júri. Entre eles, a tia de Melani, Cleonice Escobar Aguiar, 38 anos.
A gente vem sofrendo muito com a perda precoce dela. Todos a amavam muito. Esperamos que a justiça seja feita e que a ré seja condenada com a maior pena possível. Não nos trará ela de volta, mas teremos um sentimento de dever cumprido, e de que a morte dela não tenha sido em vão.
CLEONICE ESCOBAR AGUIAR, 38 ANOS
Tia da Melani
Além dos tios e pais, Melani deixa também quatro irmãos e avós, com quem chegou a morar.
Esquema clandestino
A investigação da morte da transexual levou a Polícia Civil a descortinar um mercado clandestino no qual os procedimentos estéticos são realizados com produtos proibidos, baixo custo e risco à saúde. No telefone de Melani, os agentes encontraram imagens do silicone industrial adquirido pela internet e entregue em Caxias do Sul. Na casa de Marcella, os policiais encontraram seringas e agulhas usadas para aplicação.
Em depoimento à polícia, a mulher admitiu ter realizado o procedimento. Contou que no mês de agosto teria viajado a Santa Cruz do Sul para fazer a aplicação em outra pessoa. Foi quando ela e Melani se encontraram e combinaram que a colocação do silicone industrial aconteceria dias depois. A jovem já havia feito procedimento anterior com a mesma mulher, segundo a polícia, e queria fazer uma nova nos glúteos.
O valor acertado entre as duas foi de R$ 2 mil — em geral, o pagamento é de R$ 3 mil, mas como se tratava de uma segunda aplicação o montante foi mais baixo. Melani pagou pelo procedimento, realizado no quarto de uma casa onde ela costumava se hospedar em Santa Cruz do Sul. A proprietária da residência foi quem chamou o socorro e informou a família da vítima.
No celular da vítima, os policiais ainda encontraram fotografias tiradas durante a aplicação. No telefone da investigada, havia imagens do procedimento realizado em Melani.
Para injetar na jovem foram adquiridos cinco litros de silicone industrial. A polícia descobriu, inclusive, que o produto era de qualidade inferior. Segundo a investigação, a mulher fez uma reclamação na internet ao vendedor porque achou o silicone muito fino, mas desistiu de devolver o produto e resolveu aplicar do mesmo jeito.
O júri
O julgamento está previsto para se iniciar às 13h15min, no Fórum de Santa Cruz do Sul. A sessão será coordenada pela juíza Márcia Inês Doebber Wrasse, da 1ª Vara Criminal. Inicialmente, serão sorteados os nomes de sete jurados para integrarem o Conselho de Sentença.
Logo depois, se dará início às oitivas. A delegada Ana Luísa Aita Pippi, que coordenou a investigação, será ouvida como testemunha de acusação. Na sequência, haverá o interrogatório da ré. Pelo Ministério Público, atua o promotor Gustavo Burgos de Oliveira e pela ré o defensor público Arnaldo Franca Quaresma Júnior.
Contraponto
A Defensoria Pública, responsável pela defesa da ré, informou que não se manifesta antes do plenário e que fará as manifestações sobre o caso somente durante o júri.
Entenda
O produto
A Anvisa proíbe o uso de silicone industrial em procedimentos estéticos. O produto tem como finalidade a limpeza de carros e peças de avião, impermeabilização de azulejos, vedação de vidros, entre outras utilidades, e não deve ser utilizado no corpo. O produto não é esterilizado e nem preparado para o uso humano.
Os riscos
Quando aplicado no corpo, pode causar lesões gravíssimas na vítima, e até a morte. Algumas lesões podem não acontecer na hora, mas anos depois. Esses procedimentos, em geral, são realizados sem nenhuma higiene ou exame prévio. O produto é injetado diretamente no corpo com agulhas e seringas.
É crime
A Anvisa alerta que a aplicação ilegal do silicone industrial no corpo humano é considerada crime contra a saúde pública previsto no Código Penal — exercício ilegal da medicina, curandeirismo e lesão corporal.
E se já aplicou?
A orientação para quem aplicou silicone industrial no próprio corpo é procurar um médico, mesmo que ainda não tenha sentido qualquer sintoma. Somente um especialista poderá avaliar a gravidade de cada caso.
Denúncia
Caso suspeite do uso de produtos utilizados de maneira incorreta, é possível entrar em contato com a Anvisa por meio da Ouvidoria (www.gov.br/anvisa/pt-br). Também é possível denunciar os casos diretamente à Polícia Civil (181 – Disque-Denúncia)
Fonte: Anvisa e Polícia Civil do RS