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Márcio Pereira de Souza ainda teme andar pela rua. Aos 35 anos, receia ser surpreendido por uma abordagem policial. O pintor predial não deseja reviver o pesadelo da prisão, depois de ter passado um ano, um mês e 20 dias encarcerado no Presídio Central de Porto Alegre. Márcio foi preso por um crime que não cometeu.
A absolvição do pintor ocorreu em júri no último dia 1º, após mais de quatro anos à espera pela conclusão do processo que analisou se ele havia ou não dado o disparo que atingiu a perna de um policial militar. A arma de onde teria partido o tiro foi apresentada às autoridades em uma delegacia de polícia em Canoas, ao final da noite de 22 de janeiro de 2018.
— Eu estava no quarto andar quando ouvimos os tiros da rua. Olhamos pela janela e tinha uma correria na rua. Corremos também para buscar o meu enteado que estava brincando no térreo com outras crianças — lembra Márcio.
Era perto das 23h30min daquele dia 22 de janeiro, uma terça-feira. A procura apressada para resgatar o menino coincidiu com a aparição de um grupo de policiais militares à entrada do prédio, no bairro Guajuviras, em Canoas, onde morava a mãe de Márcio.
— Tinha ido prestar solidariedade à minha mãe, pois meu irmão mais novo havia sido preso. A gente já estava subindo o segundo lance de escadas, quando os policiais nos viram com a criança, perguntaram de qual apartamento eu vinha. Respondi. Sem explicar nada, me jogaram no chão e começaram a me chutar — conta.
Segundo Márcio, foram cerca de 15 minutos no chão, algemado. Márcio relembra que sua família, em desespero, buscava entender e tentava explicar que ele não tinha atirado em ninguém. Depois de ser interrogado diante da calçada, recorda, foi colocado provisoriamente no porta-malas de uma viatura. Foi fotografado. Trocado de viatura, foi novamente questionado sobre os fatos daquela noite.
— Eles perguntavam: "Quem são os caras? Quem são os caras?". Eu nem tinha chance de responder. Tentava falar e apanhava mais — relata.
Ao passar pela UPA 24 horas do bairro para exames, um boletim de atendimento foi emitido. Já era madrugada de 23 de janeiro — o prontuário descreve o horário de 1h18min. Nas linhas principais, os apontamentos da vistoria clínica reportaram lesão nasal, ferimentos na face e uma hemorragia menor incontrolável. Era o sangramento pela via nasal.
— Meu nariz estava quebrado. Olhos roxos. Dor de pancadas por todo corpo. Pedi água. Quando a enfermeira foi buscar, um policial impediu — afirma Márcio.
Chega informação sobre o motivo da prisão
Somente quando foi apresentado na Delegacia de Polícia, Márcio ficou sabendo porque havia sido detido. Um advogado, designado sem o conhecimento do pintor até aquele momento, foi quem anunciou o que estava acontecendo.
— Me botaram numa jaula, descalço, com as roupas rasgadas. Dormi algemado e sentado. Nem um copo de água me deram. Só conseguia pensar que no dia seguinte as coisas seriam esclarecidas e eu seria liberado.
Não foi isso o que aconteceu.
— Dois policiais apareceram para abrir as grades e me avisaram que eu estava sendo transferido para o Presídio Central.
Foi por meio do advogado, que cobrou honorários da família de Márcio, que ele ficou sabendo, já na manhã de quarta, que as autoridades tinham recolhido, nas imediações do prédio, uma arma, um radiocomunicador e uma touca balaclava — semelhante às utilizadas por pilotos de corridas — que diziam ser dele. Negou. Em vão.
Por volta de 22h30min do dia 23 de janeiro de 2018, o pintor de paredes chegou à triagem de presos de uma das cadeias mais intimidadoras do Estado, o Central.
Carimbado como um "atirador de policiais"
Logo na chegada à cadeia onde passaria mais de um ano de sua vida, Márcio foi apresentado por seu condutor com uma das credenciais mais perturbadoras para quem é preso: alguém que matou ou tentou matar um policial.
Não sabia o que fazer. Só pedia a Deus que me tirasse daquele lugar.
MÁRCIO PEREIRA DE SOUZA
Pintor predial
— Apanhei de novo.
O pintor diz lembrar que seu condutor declarou: "Esse aqui deu tiro de fuzil num policial".
— Fui rodeado na hora por uns quatro ou cinco homens. Levei cacetadas nos braços e nas costas. Nem sei quanto tempo durou. Ali eu fiquei apavorado. Percebi que não teria o esclarecimento que eu esperava. Que eu estava entrando no inferno.
A realidade dos dias foi se equiparando à expectativa. Pouca higiene, nenhuma privacidade. Alimentação insuficiente. Sono precário, no chão, ombro a ombro com desconhecidos em ambientes imundos e claustrofóbicos.
— Não sabia o que fazer. Só pedia a Deus que me tirasse daquele lugar — pontua.
Defensoria acredita na versão da família e pede DNA
A angústia sobre a incerteza do futuro acompanhava o pensamento do pintor. A virada na história teve início porque a Defensoria Pública sensibilizou-se com a persistência da família de Márcio, ouviu e considerou que o apelo merecia atenção.
Na primeira audiência do caso na Justiça, em agosto de 2018, o defensor público Andrey Regis de Melo, dirigente do Núcleo de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado, solicitou exame pericial de DNA em fios de cabelo encontrados na touca balaclava recolhida nas proximidades de onde o pintor foi preso.
O resultado saiu em 20 de novembro daquele ano. Foi categórico ao afirmar que o material biológico presente na touca balaclava é divergente do perfil genético de Márcio e indicou que pertence a outro indivíduo do sexo masculino.
A liberdade esperada finalmente chegou em 11 de fevereiro de 2019, após três pedidos de soltura pela Defensoria Pública. A lembrança da tarde daquela segunda-feira ainda emociona Márcio. Lágrimas umedecem seu rosto. A voz treme.
— Foi um alívio. Sair daquele lugar horrível. Reencontrar minha família.
Livre do aprisionamento, o pintor predial precisou prestar contas bimestralmente à Justiça até o encerramento do processo. Atualmente, reestrutura-se ao lado da família, residindo em outra cidade e empregado como pintor em uma fábrica de móveis. A absolvição acerca da acusação criminal, contudo, não lhe concedeu a resposta almejada por mais de cinco anos.
— Por que eu fui preso? Penso nisso todas as noites e não consigo achar uma resposta. Ainda analiso se vou pedir reparação. Mas nada que aconteça vai devolver o meu tempo de vida. Os momentos de crescimento dos meus filhos que perdi. A incerteza que passei. Será que meu nome está limpo ou posso ser preso de novo se for parado na rua? Ainda tenho medo.
O que diz a Secretaria da Segurança Pública
A Secretaria da Segurança Pública (SSP) tomou conhecimento na última semana sobre o desfecho do júri de Canoas e irá averiguar o caso relativo ao ano de 2018 junto à Brigada Militar e à Policia Civil. A SSP reitera que trabalha de forma sistêmica no aperfeiçoamento de protocolos de qualificação e ações de técnicas de abordagens.