Após marcar um encontro pelo aplicativo de relacionamento Tinder, um morador da zona norte da Porto Alegre foi dopado e teve um prejuízo financeiro e material estimado em cerca de R$ 40 mil. O homem relata ter ficado apagado por cerca de três dias, dentro de casa, onde ocorreu o encontro. O criminoso invadiu o celular da vítima, realizou transferências bancárias e também levou objetos pessoais da casa. A ação ocorreu no começo de março e é investigada pela Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância da Capital.
Conforme a vítima — que preferiu não se identificar e será chamado pelo nome fictício de João nesta reportagem —, as conversas entre ele e o homem duraram cerca de 20 dias, após o match na plataforma. Os dois chegaram a conversar por ligações. João conta que os dois marcaram um encontro em sua casa. Era um domingo de março, quando, por volta das 16h30min, o criminoso chegou ao apartamento:
— A primeira coisa que ele perguntou era se eu tinha bebida em casa, disse para a gente beber. Mas eu não bebo, então não tinha nada. Ele disse para pedirmos bebida em um aplicativo específico, insistiu que eu devia pagar com o crédito, cadastrar meu cartão. São uns detalhes que na hora parecem não ser nada, mas hoje percebo que ele queria me ver colocando meus dados ali. A gente não pensa nesse tipo de maldade, não ia imaginar algo assim.
João lembra que pediram um vinho e ficaram conversando. Em determinado momento, o criminoso mostrou a identidade e ficou falando sobre si, "numa tentativa de ganhar confiança", diz a vítima. A foto no documento era bastante semelhante ao golpista, e não levantou suspeitas naquele momento. O criminoso disse que servia no Exército e que foi transferido para a Capital, onde morava na casa da avó. Hoje, João acredita que a história tenha sido inventada e que a identidade apresentada seja de uma vítima anterior.
Em algum momento ao longo da conversa, o criminoso teria colocado subtâncias na bebida ingerida pela vítima, que atua na área da saúde:
— Eu bebi uma taça e parei, mas ele insistiu para tomarmos outra. Bebi e de repente minha memória apagou, não lembro de nada. Não me senti estranho, nem bêbado, não fiquei tonto, se isso tivesse acontecido eu podia ter tentado pedir ajuda. Mas não tenho mais memória depois desse momento. Devo ter ficado acordado por mais algum tempo e, de alguma forma, passei a senha numérica do banco, porque ele conseguiu movimentar minha conta. Mas não lembro de nada, é como se eu tivesse caído no sono imediatamente.
O profissional de saúde acredita ter perdido a consciência antes das 20h. O criminoso deixou a casa por volta de meia-noite. Segundo a vítima, o golpista acessou contas, fez transferências, Pix e compras no débito. O cartão de crédito, o celular e diversos documentos, incluindo o título de eleitor de João, foram levados. A casa foi revirada e foram roubados objetos específicos, como roupas esportivas, calçados e relógio. O criminoso deixou a residência com um mala cheia de coisas da vítima. O prejuízo foi de cerca de R$ 40 mil.
Eu bebi uma taça e parei, mas ele insistiu para tomarmos outra. Bebi e de repente minha memória apagou, não lembro de nada. Não me senti estranho, nem bêbado, não fiquei tonto, se isso tivesse acontecido eu podia ter tentado pedir ajuda. Mas não tenho mais memória depois desse momento.
VÍTIMA
Sobreencontro com homem que conheceu por aplicativo
No dia seguinte, o criminoso efetuou a compra de uma passagem na rodoviária de Florianópolis e reservou hospedagem no local. Ele também pagou por estacionamento e fez compras em lojas de artigos esportivos.
— Claramente não foi o primeiro golpe dele, porque ele sabia muito bem o que estava fazendo — acredita João.
Vítima acordou dois dias depois
O profissional de saúde só acordou dois dias depois, com o barulho da mãe batendo na porta do apartamento. Ele tinha lesões leves e hematomas pelo corpo.
— Lembro que abri a porta e ela perguntou por que não tinha ido trabalhar. Eu respondi dizendo que era domingo, mas já era terça-feira. Eu só voltei para a cama para dormir, sentia muito sono. Ela percebeu que eu estava drogado, era muito nítido, eu não conseguia falar nem andar direito.
A vítima foi a uma unidade de saúde onde recebeu atendimento. O exame para possível violência sexual deu negativo, mas ele passará pela profilaxia para vítimas de abuso, por precaução. Segundo os exames, o homem teria sido dopado com uma mistura de duas substâncias. Como os testes foram feitos após alguns dias, as informações não são tão precisas.
No entanto, a polícia afirma que, em razão da dosagem ingerida, o homem podia ter morrido.
— Uma das substâncias é bastante perigosa e devo ter recebido uma dose bem alta. Nesse caso, pode levar a morte. Realmente acredito que não teria acordado naquele dia se minha mãe não tivesse vindo aqui, e a droga continuaria agindo. Uns amigos tinham vindo no dia anterior, preocupados. Bateram na porta, mas não ouvi nada — acrescenta João.
"Minha vida virou um caos completo"
Além do dano econômico, a vítima relata outros tipos de prejuízo. O homem lembra que, nos primeiros dias, tinha dificuldade para sair de casa, ir ao trabalho e ao supermercado, em razão do trauma. Ele dormiu por algumas noites na casa de familiares, para não ficar sozinho no apartamento. Agora, vem revezando, mas relata sentir tristeza e ansiedade se fica sozinho em casa. Para evitar lembrar do episódio, ele pretende se mudar. Quase um mês após o fato, também não conseguiu retomar as atividades no trabalho.
— Dá muita raiva, mas o dinheiro a gente recupera em algum momento. O principal problema é toda a confusão que vem depois. Já não me sinto seguro de morar na minha casa, e sempre me senti tranquilo aqui. Só a ideia de voltar ao trabalho me dá uma ansiedade muito grande. Retomar a vida é mais difícil do que parece, e isso que tenho bastante apoio. Fora o estresse na família, entre meus amigos, todo mundo ficou muito preocupado, vejo que é algo que não afetou só a mim, mas todos que estão perto — avalia.
O homem conta que vem fazendo tratamento psicológico e psiquiátrico. Ele precisou refazer diversos tipos de documento. Como um depende do outro, o processo se torna mais complexo:
— Minha vida virou um caos completo. Eu achava que já tinha passado pelas piores coisas que a vida podia jogar em cima de mim, mas descobri que não. É uma situação muito complicada, com muitas consequências. Não consigo me imaginar tendo encontros ou algum relacionamento tão cedo.
João acredita que o criminoso tenha escolhido como vítima alguém da comunidade LGBT+ de forma intencional, para dificultar a denúncia:
— Sinto que as pessoas me culpabilizam o tempo inteiro. Dizem que eu recebi ele aqui porque quis, que a consequência é minha, mas não é assim que funciona. Há uma homofobia, uma culpabilização enraizada nesse pensamento, mesmo que as pessoas não se deem conta.
Polícia investiga
Após receber atendimento médico, o homem foi a delegacia para registrar o caso, que está a cargo da Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância da Capital.
Há alguns meses, uma ação semelhante fez ao menos seis vítimas na Capital. Nesses casos, no entanto, o aplicativo usado foi outro e as vítimas não foram dopadas, mas brutalmente agredidas durante a ação.
— Acho que este caso pode ter sido até mais violento, porque a vítima poderia ter morrido em razão da dosagem que recebeu. Acredito que não seja ação da mesma quadrilha, porque o modus operandi é bem diferente — afirma a delegada Andrea Mattos.
A investigação está em andamento e apura também se outras pessoas foram vítimas do crime. A delegada reforça alguns cuidados a serem observados antes de marcar encontros, como avisar pessoas próximas sobre o compromisso.
O homem é atendido pelo advogado Diego Candido, especialista em Direito LGBT+, que afirma estar "empenhado ao máximo em contribuir com a investigação policial, fornecendo todos os elementos de prova obtidos, inclusive as filmagens do período de 72 horas em que a vítima permaneceu desacordada em sua residência".
"Além disso, tem-se um prejuízo financeiro bastante expressivo, o que atrai a responsabilidade da instituição financeira, devido à vulnerabilidade do sistema de segurança bancário, já tendo sido tomadas as medidas cabíveis na esfera cível", afirmou em nota.
Contraponto
O Tinder se manifestou por meio de nota:
"O que foi relatado é preocupante e não é tolerado no Tinder. Vamos cooperar totalmente com as autoridades e fornecer todos os detalhes que possam ser úteis para a investigação".