Por duas décadas, uma família do Amazonas buscou respostas para o desaparecimento do filho de 13 anos, que sumiu em setembro de 2000. Neste ano, uma análise de perfil genético, com auxílio da perícia do RS, permitiu comprovar que um crânio localizado numa praia em 2003 pertencia ao adolescente. Dar fim à angústia de famílias que tentam desvendar o paradeiro de parentes é um dos objetivos do Banco de Perfis Genéticos mantido pelo do Instituto-Geral de Perícias (IGP) no Estado.
O sistema compara os perfis de familiares e de pessoas encontradas mortas, sem identificação. Desde que os primeiros perfis foram inseridos, em 2011, até o período atual, pelo menos 79 desaparecidos foram identificados por meio do cruzamento de material genético. Desses, 74 se deram por vínculo com familiares, e cinco foram outras amostras, como casos de suspeitos ou condenados por crimes, que já tinham DNA coletado, e mais tarde tiveram corpos encontrados sem identificação.
— Tem toda essa tristeza da família, de descobrir o falecimento, mas, ao mesmo tempo, encerra um ciclo que é muito angustiante. Poder auxiliar nesse ponto é muito gratificante — avalia a coordenadora do Banco de Perfis Genéticos do IGP-RS, Cecília Matte.
O instituto é líder nacional em identificações de desaparecidos, mas esse número poderia ser maior. Um mutirão realizado ano passado para coletar DNA de familiares fez com que a procura aumentasse, mas, segundo a perita, o serviço ainda precisa ser mais difundido.
— Algumas pessoas ainda chegam aqui sem saber que poderiam fazer essa coleta — explica.
Atualmente, no Estado há 594 corpos que carecem de identificação — 81 do sexo feminino e 510 do sexo masculino (em três não foi possível fazer essa distinção). Enquanto isso, há 691 familiares que cederam material genético e ainda não conseguiram confirmação. O mutirão de 2021 permitiu coletar 198 amostras e resultou na identificação de 14 pessoas. O objetivo é realizar nova rodada no início de 2023.
O DNA cedido por familiares é usado somente para a busca do desaparecido. Se o corpo já tiver sido enterrado, os parentes podem buscar autorização judicial para sepultá-lo em outro lugar. Os dados são inseridos também no Banco Nacional de Perfis Genéticos, para cruzamento casos de todo o Brasil, o que aumenta as chances de identificação.
"Chega num ponto que queremos entregar algo, que seja o corpo"
À frente da delegacia especializada em investigar desaparecimentos em Porto Alegre, a delegada Caroline Bamberg diz que a prioridade é localizar as pessoas com vida, mas nem sempre é possível. Quando o tempo se prolonga, a comparação de DNA se torna esperança para dar desfecho ao caso.
— Chega num ponto que queremos entregar algo, que seja o corpo, os restos mortais, para que a família vivencie esse luto, dê um enterro digno para o familiar. É uma carga emocional muito grande. Sempre há aquela esperança, aquele pensamento sobre como a pessoa está. Os familiares não conseguem prosseguir com a vida. Tivemos vários casos aqui, que somente com o DNA foi feita a identificação — explica a delegada.
É uma carga emocional muito grande. Sempre há aquela esperança, aquele pensamento sobre como a pessoa está. Os familiares não conseguem prosseguir com a vida. Tivemos vários casos aqui, que somente com o DNA foi feita a identificação.
CAROLINE BAMBERG
Responsável pela delegacia especializada em investigar desaparecimentos em Porto Alegre
A maior parte dos casos que chegam à equipe da delegacia é de pessoas com problemas com álcool e drogas ou alguma deficiência ou transtorno mental, que acabam se afastando da convivência familiar. Tanto o IGP como a Polícia Civil vêm tentando colocar em prática a iniciativa de coletar material genético de pessoas que vivem nas ruas, como forma de ampliar as identificações. A intenção é realizar mutirão no próximo ano. Atualmente, no banco de perfis genéticos, há somente uma pessoa viva cadastrada.
— Muitas pessoas estão desamparadas, nas ruas, por vezes até querem aproximação com a família, mas não conseguem acesso ou mesmo demonstrar isso. É importante termos a identificação e tentar promover, se ela quiser, esse reencontro — diz a delegada.
Identidade de menino de Manaus confirmada 22 anos depois
Em setembro de 2000, Dalbertt Dalmas Nascimento Gondin saiu de casa e seguiu numa embarcação até a Praia do Tupé, em Manaus. Depois disso, o garoto nunca mais foi encontrado. Três anos depois, um crânio foi localizado na mesma praia, mas na época não foi possível fazer a comparação genética. O crânio permaneceu anos armazenado.
Em maio de 2022, o IGP-RS recebeu pedido para auxiliar no caso. Um fragmento de sete centímetros de osso e amostras de sangue da mãe e da irmã do garoto foram enviados aos peritos do RS. A amostra foi a mais antiga já analisada pela Divisão de Genética Forense do Departamento de Perícias Laboratoriais do IGP. Esse longo tempo tornou a análise mais complexa, necessitando de diferentes técnicas.
A análise identificou uma variante genética rara, encontrada tanto no DNA do osso quanto no da mãe e da irmã. Em 21 de outubro, a família de Dalbertt foi informada sobre a confirmação de que aquela ossada era mesmo do garoto. Embora a identificação tenha sido realizada com auxílio do IGP-RS, não chega a ser contabilizada nas 79 porque o laudo não foi emitido no Estado.
Integração entre Estados
A Divisão de Genética Forense do IGP-RS faz parte da Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos, que conta com dados de outros Estados. A finalidade é compartilhar e comparar perfis entre os laboratórios, e ajudar na apuração de crimes. A rede mantém os mesmos parâmetros técnicos e, por vezes, divide a resolução de casos, como o da identificação do garoto de Manaus.
O RS também está colaborando para ajudar a desvendar casos de violência sexual em Santa Catarina. Os vestígios desses crimes, coletados no local ou junto às vítimas, foram processados no Estado. A parceria é uma das contrapartidas pelo IGP-RS ter recebido um equipamento, que extrai o DNA presente nesses vestígios, de forma automatizada.
— Tem vários criminosos que não atuam só num lugar. Há alguns que circulam, então, se os Estados não se conversarem, e o banco é o meio com relação a perfil genético, nunca vai conseguir desvendar alguns crimes — diz Cecília.
Em Porto Alegre, à espera de um desfecho
Em setembro de 2020, Letícia Torquato Pereira, 15 anos, saiu da casa dos avós no Centro Histórico, em Porto Alegre para ir até a Orla. Depois daquele dia, a adolescente não foi mais foi encontrada pelos familiares. A investigação concluiu que ela foi assassinada dias depois e teve o corpo ocultado. Avó materna, Dirlei Torquato, 69 anos, confia no resultado apresentado pela polícia e diz que a neta não teria motivos para permanecer tanto tempo longe de casa, mas, ainda assim, vive a angústia de não ter um desfecho completo.
— Quando se trata de uma morte por acidente ou natural, se consegue colocar um ponto final na história. Mas no caso da Letícia não. É desesperador — diz a avó.
Dois suspeitos, um homem e uma mulher, foram indiciados pelo assassinato da adolescente e se tornaram réus. A apuração do caso apontou que Letícia teria passado os últimos dias de vida acompanhada dessas pessoas, pelas quais também teria sido morta, por ciúmes. Os réus negam envolvimento no crime. Assim como é padrão em caso de desaparecimentos, os familiares realizaram coleta de material genético para comparativo. É nessa esperança que eles se apegam, na expectativa de terem mais respostas sobre o caso.
— Enquanto não encontrarmos o corpo dela, não vamos ter sossego. É muito doloroso. O avô faleceu agora em março, o que deixou tudo ainda mais sofrido. A gente vive em sobressalto. É muito triste. A irmã (mais nova) sente muita falta dela, eram muito ligadas. Volta e meia tem crises de choro. É bem difícil — afirma Dirlei.
Outros casos
Procura encerrada para uma mãe da Capital
Ao longo de mais de um ano, uma moradora de Porto Alegre procurou pelo filho de 44 anos, que desapareceu em novembro de 2021. Com problemas psicológicos, o homem costumava sair caminhando sem rumo. Em fevereiro de 2022, uma ossada foi localizada numa área de mato, às margens da BR-116, em Sentinela do Sul. A análise do perfil genético permitiu identificar que se tratava da mesma pessoa. A suspeita é de que a vítima tenha se embrenhado no mato e a morte tenha se dado de forma natural.
DNA de ossada encontrada em Caxias leva à identidade de paraibano
Em janeiro de 2021, uma ossada foi localizada num terreno baldio, em Caxias do Sul, na Serra. Havia uma marca de disparo de arma de fogo no crânio. O trabalho de análise se estendeu por mais de um ano. Os peritos conseguiram extrair o DNA da arcada dentária da vítima, que foi confrontado com o banco de perfis genéticos. Foi assim que descobriram que se tratava de um homem, de 32 anos, natural da Paraíba, que estava desaparecido. O DNA dele havia sido inserido no banco em 2019, no período em que cumpria pena no Presídio Regional de Caxias do Sul, e passou por coleta. Atualmente, há 12.332 suspeitos ou condenados cadastrados no banco.
Crime na Redenção desvendado por cruzamento de vestígios e suspeitos
O banco de perfis genéticos também permite fazer cruzamento de vestígios de crimes com suspeitos — há 2.200 amostras de evidências de delitos cadastradas no banco. Em 2016, foi registrado um caso de estupro no Parque da Redenção em Porto Alegre, no qual houve confirmação do DNA de um suspeito. Neste ano, após aquisição de equipamento que permite automatizar o processamento das amostras, o IGP passou a incluir no banco também amostras antigas, que estavam armazenadas, mas ainda não tinham sido processadas em razão da alta demanda. Dessa forma, descobriram que um vestígio do mesmo autor havia sido encontrado em 2014, num outro caso de estupro registrado na Avenida João Pessoa.
Como acessar o serviço
Quem tem um familiar desaparecido deve se dirigir a uma delegacia de polícia e registrar o caso, informando o máximo de detalhes sobre a pessoa e as circunstâncias do fato. A Polícia Civil faz o encaminhamento à perícia, para que o material genético seja recolhido.
Além do DNA, existem outras formas de identificação, como a coleta de impressões digitais, quando ela é possível, e análise da arcada dentária. Neste último, é necessário que os peritos tenham acesso a exames ou objetos (moldes, próteses, aparelhos dentários, placas de bruxismo ou clareamento, protetores esportivos) do desaparecido.
O que fazer em caso de desaparecimento
- Registre o desaparecimento na polícia assim que for percebido;
- Leve uma fotografia atualizada para repassar aos policiais;
- Outras informações relevantes no momento do registro são: saber se a pessoa tem telefone celular e se foi levado junto, se possui redes sociais, os dados de conta bancária, se possui veículo e qual a placa, locais que costuma frequentar, pessoas com quem mantém contato (amigos, familiares), se é usuária de drogas e se houve alguma desavença que pode ter motivado o sumiço;
- Comunique o desaparecimento aos amigos e conhecidos, que podem auxiliar com informações. Ao divulgar o sumiço, informe os contatos de órgãos oficiais como Polícia Civil e Brigada Militar para receber informações;
- Outra orientação importante é que as famílias comuniquem à polícia não somente o desaparecimento, mas também a localização. É muito comum os policiais depararem com casos de pessoas que não estão mais desaparecidas, mas que no sistema constam como sumidas porque o registro de localização não foi feito.
Colabore
- Informações sobre casos de desaparecimentos podem ser repassadas à Polícia Civil por meio do telefone 0800-642-0121 ou pelo 197.