Sentada sob a sombra de uma caneleira plantada em 1998 na avenida principal de Lagoa dos Três Cantos, a professora aposentada Leocádia Maria Kroessin, 66 anos, se gaba que só vê violência pelo que assiste na televisão ou lê na internet. O município, espremido entre Não-Me-Toque e Tapera, no norte do Rio Grande do Sul, é um reduto de tranquilidade que os moradores se orgulham em exibir.
Depois de ter atuado por 40 anos como professora, 30 deles na cidade, não há nenhum trescantense jovem adulto que não tenha passado por ela em sala de aula. Ninguém que caminhe em frente a sua casa se atreve a não cumprimentá-la. Todos os moradores se reconhecem. Para a comunidade de 1,6 mil habitantes, o tempo passa em outro ritmo. O fluxo de veículos é quase inexistente, e o sossego da zona urbana em um dia comum só não é maior que o silêncio do horário do almoço – do meio-dia às 13h30min as portas se fecham e a rua fica ainda mais deserta.
No Parque da Lagoa, o principal ponto turístico da cidade, a sede da BM erguida no estilo enxaimel – mesmo modelo da sede da prefeitura e da Câmera de Vereadores – fica com o telefone sem tocar por dias.
O delegado Marcos Muniz Veloso atendeu o município por quatro anos e conta que chegou a passar um mês inteiro sem registrar nenhuma ocorrência. Não há sequer reclamação por som alto, briga de bar, infração de trânsito ou embriaguez ao volante.
– É uma cidade de nível educacional alto, e isso influencia para o índice criminal ser tão baixo – avalia o delegado.
Há mais de um ano ocorreu um roubo a estabelecimento comercial. O ladrão levou um fardo de cerveja. Em todo ano de 2020, foram seis furtos. O mais recente caso de repercussão foi há um mês: o sumiço de uma bacia com flores no pátio de uma moradora. Nenhum suspeito foi identificado.
– São tão poucas ocorrências que algumas que nos chegam como furto, às vezes, são algo que foi perdido por algum descuido. Nosso trabalho é basicamente identificar pessoas desconhecidas que possam estar perdidas aqui. A baixa criminalidade não é sorte, é policiamento preventivo – defende o tenente Charles Leandro Elias Santos.
Por não ver risco de ter um pertence seu levado, o músico Roberto Rudi Port, 36 anos, pendurou uma guitarra na frente de casa, onde também tem estúdio de gravação. Há cinco anos o instrumento está grudado na parede. Ninguém põe a mão, e Port conseguiu dar a identidade que desejava ao seu espaço.
– Não sei o que é viver com violência. Para mim faz todo o sentido ter uma guitarra aqui na frente, que é um instrumento que sintetiza a música.
Não temer crime imprime outro estilo de vida à família. Todas as vezes em que ele e o pai, Valdir Leomar Port, 63 anos, esqueceram a chave dentro do carro ou deixaram a porta de casa aberta à noite, nada aconteceu.
– Por isso que não quero sair daqui de jeito nenhum – assegura o pai.
Na Padaria Borghetti, um dos símbolos da gastronomia local, a segurança faz com que nenhum cliente deixe de provar a receita principal da família. Quando o estabelecimento fecha as portas, no fim da tarde, e o cliente só pode buscar a encomenda no começo da noite, a cuca fica aguardando seu dono chegar em cima de uma mesa do lado de fora, na margem da ERS332, sem que qualquer desavisado ouse retirá-la dali. Em outro dia, a pessoa volta e faz o pagamento.
– Tem casos em que eles vêm de longe e querem levar a cuca de lembrança para alguém. Aí deixamos ali, ninguém pega. E tem câmera – explica a atendente Luana Ortiz de Oliveira, 22 anos.
O sócio-proprietário da padaria, Mateus Borghetti, 29 anos, recorda de um assalto a banco na região quando ainda era criança. Como a memória moradores de Lagoa dos Três Cantos mal alcança situações de violência, eles dispensam condutas comuns à maioria da população. Dono do trailer de cachorro quente no Parque da Lagoa, João Caruso Camargo dos Santos, 56 anos, jamais se preocupou em retirar da calçada as cadeiras e mesas de madeira. Já deixou a porta do trailer apenas encostada sem que desse falta de nenhuma lata de refrigerante no dia seguinte.
– Do jeito que eu deixar aqui elas ficam. Ninguém acredita, mas é verdade. Aqui é muito abençoado.