No fim da manhã de 26 de março de 2014, Júlia (os nomes de pacientes usados na reportagem são fictícios) saiu de um consultório médico na Rua General Câmara, em Canguçu, para a Delegacia de Polícia. Aos prantos, contava ter sido abusada sexualmente por Cairo Roberto de Ávila Barbosa, com quem havia se consultado uma hora antes. Sete anos se passaram até que a história dela e de outras mulheres viesse a público, num caso que escandalizou o município de 56 mil habitantes, no sul do Estado.
O ginecologista de 65 anos, que nega as acusações, tornou-se réu por violação sexual mediante fraude. Na semana passada, mais mulheres começaram a buscar a Polícia Civil com relatos parecidos. Desde então, já foram mais 16 registros, além de outras quatro pacientes que buscaram o Ministério Público (MP).
— Carreguei por anos isso comigo, contei somente para minha família. Tive crises de choro, depressão. A gente fica extremamente impotente. É uma coisa que não tem como esquecer — conta Júlia, hoje com 40 anos.
Na época em que foi ao médico, diz que já tinha ouvido boatos sobre a conduta do profissional, embora nada concreto. Como ele era a única opção naquele dia por meio do convênio que tinha, decidiu marcar uma consulta. Saiu de lá acompanhada do ex-marido, que lhe deu apoio para buscar a polícia.
O caminho feito por ela, direto da clínica para a delegacia, é exceção. A maioria das mulheres que acusa o médico só conseguiu registrar o fato anos ou meses depois. Alice, 44 anos, mãe de quatro filhos, diz ter sido vítima do ginecologista em 2015, após buscar uma consulta particular em razão de um sangramento que não cessava depois de um parto. Da mesma forma, relata ter saído da clínica traumatizada.
— O que aconteceu ficou só entre eu e meu marido. Não comentei com mais ninguém, nem com a minha mãe. A gente não tem liberdade de chegar e se abrir. Muitas vão dizer “tu te ofereceu” — confidencia.
O silêncio só foi rompido anos depois, quando deparou com uma amiga em desespero. Mariana, 29 anos, recusava-se a contar o que havia acontecido para Alice.
— Pedi: “me conta”. Até que ela disse: “acredita que o médico abusou de mim?” Olhei para ela: “acredito, porque aconteceu comigo também”. Vi que não era a única. Foi aí que tomamos uma atitude — descreve.
Em 14 de junho de 2019, às 9h27min, Alice procurou a delegacia. Naquela mesma data, às 19h18min, Mariana também fez um boletim de ocorrência. Os dois casos foram registrados como violação sexual mediante fraude.
— Ela me deu força. Fomos juntas em busca da Justiça — diz Mariana.
Diferentemente da amiga, os dois episódios com a jovem, que tinha 20 anos no primeiro deles, teriam acontecido no Hospital de Caridade de Canguçu. À espera do primeiro filho, buscou atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em setembro de 2012. De forma semelhante, como descrevem as outras mulheres, o médico teria massageado o clitóris da paciente, numa espécie de masturbação.
Os motivos apresentados pelo ginecologista para realizar o toque teriam sido que estava realizando exame para coleta de material ou a estimulação dos movimentos do bebê. Para a polícia, não havia procedimento médico na ação, e sim violação sexual. Quatro anos depois, grávida novamente, Mariana diz ter sido outra vez abusada pelo médico, ao novamente ser atendida por ele no hospital. A jovem afirma ter sofrido com tentativas de suicídio e automutilação — traumas para os quais realiza tratamento até hoje.
Depressão, síndrome do pânico, insônia e crises de choro são reflexos citados constantemente pelas mulheres que afirmam ter sido vítimas. Sandra, 43 anos, conta ter sido abusada duas vezes no período de duas semanas ao buscar atendimento na clínica durante uma gravidez, em junho de 2017.
— Foi um divisor de águas na minha vida. Era uma pessoa e me tornei outra. Por muito tempo me senti culpada, mas depois entendi que esse é um problema dele. Não me sinto mais culpada, mas não consigo dormir sem remédio. Me tornei dependente de remédios. Nada vai apagar os danos psicológicos que ele me causou — descreve a ex-paciente, que registrou o caso em 12 de julho de 2019.
A investigação
Ao longo dos últimos anos, a investigação passou por delegados titulares e substitutos. Em julho de 2019, a delegada Walquiria Meder procurou uma das rádios locais em Canguçu, falou sobre a investigação, sem citar o nome do médico, e pediu que as vítimas buscassem a delegacia.
— Ainda estávamos investigando, então não podíamos citar o nome dele, mas eu tinha certeza que havia mais vítimas. Por isso, fiz esse pedido, que elas denunciassem. Tinha já na época convicção de que era uma prática reiterada porque resgatamos mais uma ou duas ocorrências bem mais antigas — recorda.
A delegada saiu direto da rádio para atender o caso de um irmão que havia assassinado a irmã, cadeirante, a tiros. A policial acredita que aquilo abalou o impacto que ela esperava que a declaração na rádio tivesse. Somente mais uma mulher buscou a polícia após aquele dia, e a policial deixou a cidade sem que o caso tivesse sido concluído.
— Casualmente, minutos depois da minha fala, teve esse crime de grande repercussão na cidade. O meu pedido ficou abafado. Ainda não estava pronto para remeter o inquérito, tinha que fazer diligências. Acabei saindo de lá e ficou pendente, não sei por quanto tempo, o andamento — explica.
Desde o ano passado, a investigação é capitaneada pelo recém-formado delegado César Braga Rodrigues Nogueira. Aos 32 anos, o ex-servidor penitenciário, que trabalhou na Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan), assumiu a DP local em setembro e deparou com os casos. Ouviu as quatro mulheres novamente.
— Sou policial, tenho que duvidar. A primeira vítima até pensei: "será que não foi um procedimento médico diferente?". Tento ser neutro. Mas todas descrevendo da mesma forma, não. A gente pega detalhes para ver se casa tudo. Não tenho dúvida nenhuma. Essa unicidade de depoimentos, nas declarações, é o elemento probatório mais robusto. Nesse tipo de crime, de violência sexual, violência doméstica, crimes praticados na intimidade do lar ou do consultório médico, a palavra da vítima precisa ter e têm um valor probatório maior. E é isso que temos. É a palavra da vítima, só que não é só uma vítima, são muitas vítimas — afirma.
A investigação seguiu com depoimentos de testemunhas, como a secretária que trabalha para o médico há décadas, e uma médica do hospital. O ginecologista também foi ouvido e, em poucas palavras, negou as acusações, mas não soube apontar porque estaria sendo acusado pelas pacientes. Em dezembro, o delegado encaminhou dois inquéritos com o indiciamento e em fevereiro mais dois. O Ministério Público denunciou o médico, que se tornou réu.
Desde a semana passada, quando o caso foi revelado em reportagem do portal Canguçu Online, mais mulheres começaram a buscar a polícia. Os depoimentos vêm sendo agendados nos últimos dias. A investigação deverá ouvir novamente a secretária e o próprio ginecologista.
Médico afastado
Considerado um dos médicos mais antigos da cidade, doutor Cairo, como é conhecido, realizava atendimentos há quatro décadas. No hospital do município, a 200 metros da sua clínica particular, cumpria plantões de 24 horas como obstetra, na maternidade, nas quintas e sábados. Por decisão da Justiça, após pedidos feitos pelo Ministério Público, está afastado do hospital desde o dia 19 de maio.
— Ele era vinculado a uma clínica que faz o atendimento de pediatria e obstetrícia na nossa maternidade. Quando tomamos conhecimento, recebemos o ofício do MP, solicitamos o afastamento à clínica. Desde então, ele não faz mais parte aqui do hospital — afirma a gestora administrativa do hospital, Miriam Radtke Neutzling.
Funcionária do município e responsável por gerir a casa de saúde há dois anos, ela afirma que até então não havia recebido denúncias sobre o atendimento do médico, embora pelo menos um dos casos registrados tenha sido no ano passado.
A casa de saúde não possui ouvidoria para receber reclamações de pacientes e, por isso, caso tenha alguma reclamação o paciente precisa comunicar diretamente a prefeitura. Após o episódio, Miriam diz que orientou a equipe para estar atenta aos relatos de pacientes:
— Sabemos que as mulheres acabam muitas vezes não falando, porque acham que vão ser rotuladas. A questão da violência sexual é bem delicada. Mas no momento que se faz a denúncia, acaba motivando as outras. Acho importante para se averiguar o que aconteceu e tomar as medidas necessárias.
O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) apura a conduta do ginecologista em uma sindicância, que pode resultar na cassação do registro profissional, concedido em fevereiro de 1981. A Justiça também determinou a suspensão dos atendimentos privados a partir de sábado (5). O Judiciário entendeu ser necessário conceder prazo às gestantes serem remanejadas para outros profissionais. Desde a divulgação do caso, no entanto, o consultório, localizado num prédio cinza com o nome do ginecologista na fachada, tem permanecido fechado. O pedido de prisão do médico foi negado.
Medo de ser julgada
Nas ruas da cidade, alguns moradores se acanham para falar sobre o assunto e outros têm opiniões diversas. Entre as mulheres, algumas afirmam que consultaram com o ginecologista e foram bem atendidas. É o caso de uma jovem de 25 anos, que diz ter frequentado o consultório nos últimos anos.
— Fui por indicação de uma amiga. Pra mim sempre foi tudo normal. A gente tem que esperar para saber como vai terminar — diz.
Uma mulher de 47 anos afirma ter sido paciente em duas gestações, no hospital do município.
— Fiquei chocada. Sempre achei um excelente médico, atencioso — afirma.
Um comerciante de 58 anos diz que na cidade já se ouvia falar no boato de que mulheres teriam sido abusadas.
— Há muito tempo se ouve isso, agora que elas tiveram coragem de falar. Mas muitas têm medo, até dos maridos — opina.
Mesmo entre as que romperam o silêncio ainda há receio de serem expostas, até mesmo para familiares. Uma das mulheres assistia ao próprio depoimento na televisão quando a filha questionou quem era aquela mulher que não mostrava o rosto. Sem saber o que dizer, desconversou. Dias depois, ao conversar sobre a repercussão do caso na cidade, fez outra descoberta: a irmã também contou ter sido vítima.
— Ela não sabia de mim e eu não sabia dela — diz.
Outra conta que o marido, ao ler seu depoimento na primeira reportagem divulgada sobre o caso, encaminhou uma mensagem: "Esses detalhes tu não tinha me contado". Ao chegar em casa, ele abraçou a esposa e chorou.
Nas redes sociais e nas ruas, o caso também repercutiu e provocou embates. Partes dos comentários defende o médico, por ser profissional respeitado, de família tradicional, casado e pai de três filhos.
Dizem que é um complô, que queremos dinheiro. Dinheiro nenhum vai desfazer meu abalo psicológico. Outros dizem que não temos provas, mas a prova são nossos depoimentos, a mesma forma de agir.
SANDRA
43 anos
— Claro que penso na família dele, que não tem culpa, numa cidade pequena, onde todo mundo se conhece. Mas a minha família também está abalada. Meu filho quando soube que era eu me abraçou e chorava — diz Alice.
Com receio de ser julgada, quando decidiu fazer o registro, Sandra trocou as roupas da academia por um moletom largo para ir até a DP. Após a repercussão do caso, diz que está chocada com os julgamentos, especialmente de mulheres.
— Dizem que é um complô, que queremos dinheiro. Dinheiro nenhum vai desfazer meu abalo psicológico. Outros dizem que não temos provas, mas a prova são nossos depoimentos, a mesma forma de agir. Nos acusam de só termos buscado ajuda agora. Não foi agora. Tenho certeza que existem muito mais vítimas. Esses julgamentos calam as mulheres — desabafa.
Decidido a descobrir o maior número de possíveis vítimas, o delegado Nogueira disponibilizou o próprio número de telefone celular funcional. Recebe por ali dezenas de mensagens de pessoas que relatam terem sido abusadas. Inclusive de fora da cidade e até de outro Estado, do Mato Grosso.
— São muitas mensagens. Muitas falam no WhatsApp e dizem que vão ver com o marido. Outras marcaram e não vieram. Às vezes, é no ímpeto, mas aí conversa com alguém e não vem — explica o delegado.
Vergonha, medo do marido, receio de ser culpada pelo que aconteceu e de ser exposta são os principais motivos apontados pelas mulheres aos policiais para terem demorado a buscar ajuda ou mesmo para não registrarem ocorrência.
— Muitas nem sequer entendiam que haviam sido abusadas. Com a matéria, viram: "ah isso aconteceu comigo". Até estranharam o procedimento, mas não conseguiam ter a convicção de que era um abuso. Outras, tinham medo de serem uma pessoa fazendo alegação muito grave, por ele ter um poder econômico grande, ser uma pessoa respeitada. Um: não entende o que aconteceu. Dois: medo da impunidade. Três: vergonha por ser cidade pequena. Quatro: vergonha e medo do marido. Esses foram os motivos mais apontados — enumera o delegado.
É uma arena onde não só o réu é julgado. Se alguém entra na tua casa, leva tuas coisas, ninguém fica questionado até que ponto a vítima facilitou. Todo mundo tem o assaltado como vítima. Enquanto a mulher violada na sua liberdade sexual, há sempre esse debate sobre até que ponto não foi permissiva.
LUANA ROCHA RIBEIRO
Promotora de Justiça
Uma das mulheres foi recebida pelo policial, contou em detalhes o abuso que teria sofrido, mas no momento de colocar no papel, declinou.
— Não quero que meu marido descubra — disse.
O receio da exposição e da reação das pessoas, inclusive dos próprios companheiros, é visto pela promotora Luana Rocha Ribeiro como fatores que levam as vítimas a postergarem a busca por ajuda e isso pode, inclusive, impedir a responsabilização de autores. No caso do médico, algumas mulheres que se dizem vítima nos anos 1990 só buscaram a polícia agora — o crime de violação sexual mediante fraude prescreve em 12 anos.
— A perversidade desse tipo de delito é essa espécie de revitimização. É uma arena onde não só o réu é julgado. Se alguém entra na tua casa, leva tuas coisas, ninguém fica questionado até que ponto a vítima facilitou. Todo mundo tem o assaltado como vítima. Enquanto a mulher violada na sua liberdade sexual, há sempre esse debate sobre até que ponto não foi permissiva. Isso multo provavelmente foi um dos fatores para que se levasse tanto tempo para descobrir o que estava acontecendo. Essas mulheres se sentiam invisíveis, amedrontas, envergonhadas — afirma.
Nos casos prescritos, as pacientes são ouvidas como testemunhas, para que fortaleçam os relatos das demais.
Encorajamento
Na Câmara de Vereadores de Canguçu, o tema foi levantado por Iasmin Roloff (PT) na sessão da última segunda-feira (31). Com 23 anos, agricultora, única mulher eleita para o Legislativo nas últimas duas décadas na cidade, pediu apoio às vítimas. Após a manifestação, começou a ser procurada por mulheres que relatam terem sido abusadas. Colocou-se à disposição para ouvi-las na última quarta-feira. Após longas conversas, uma delas decidiu ir à delegacia.
— Vivi toda a minha vida de criança e adolescente, estudante, sem ter uma referência mulher na política da minha cidade. Quando venho trazer temas de violência contra a mulher, abusos, é difícil porque falo na frente só de homens. Mas precisamos falar porque isso dá força para essas mulheres que estão sofrendo, para que possam procurar a polícia e denunciar— afirma a vereadora.
Outra paciente do médico, Camila, 21 anos, ao saber das acusações na semana passada conversou com amigas, depois chamou os pais e o companheiro para uma conversa. Confidenciou à família ter sido abusada ao buscar atendimento no hospital, há quase um ano, quando estava prestes a dar à luz o primeiro filho. Na manhã de 28 de maio, ingressou sozinha na DP local. Às 9h56min, o relato que havia silenciado por 11 meses se uniu ao das outras mulheres.
— Chegou o momento de não nos calarmos mais — diz.
Como denunciar
O contato com a Polícia Civil sobre este caso do ginecologista deve ser feito pelo telefone fixo da delegacia (53 3252-7876) ou pelo celular funcional do delegado (53 98424-2253, inclusive por WhatsApp).
Outros casos de violência contra a mulher podem ser comunicados por meio da Delegacia Online, nas delegacias especializadas ou diretamente na delegacia mais próxima.
O que diz a defesa do médico
Quando foi ouvido pela polícia, o médico negou as acusações. Em relação aos novos registros, ele ainda precisará ser ouvido novamente pela polícia, mas não há data para esse depoimento. GZH entrou em contato com o advogado Gustavo Goularte, que afirmou que mantém a manifestação encaminhada na semana passada. Na nota, o advogado afirma a inocência do cliente e diz que já ingressou com recurso.
Confira a nota na íntegra:
"As acusações são bem graves. Não existe prova da ocorrência. A defesa que foi apresentada nesta quarta-feira, no processo, já traz em caráter preliminar fortes elementos da inocência do nosso cliente. Os fatos são inexistentes. Uma das exigências do doutor Cairo é que o processo tramite o mais rápido possível para que a verdade se estabeleça."