Na manhã de 19 de outubro, enquanto inspecionavam o pátio usado para banho de sol dos presos na Penitenciária Modulada de Montenegro, os agentes recolheram uma mangueira de jardinagem caída próxima ao muro. De dentro dela, retiraram quase três quilos de drogas e 16 chips de celulares. Os arremessos, com estratégias inusitadas como esta do Vale do Caí, são apontados pela Secretaria da Administração Penitenciária (Seapen) como as principais portas de entrada de narcóticos nas prisões do Rio Grande do Sul. Em 2020, já foram apreendidos 182,5 quilos de entorpecentes em unidades prisionais do Estado — 91% a mais em relação aos 95,5 quilos localizados em todo o ano passado.
Nas prisões, os entorpecentes integram um mercado que fortalece o crime dentro e fora delas. A superlotação do sistema penitenciário, aliada ao momento de crise da pandemia do coronavírus, no qual as visitas de familiares ficaram suspensas por sete meses, são apontados pelos especialistas como fatores que estimulam a busca dos detentos pelos narcóticos.
— Se fala que a droga, num sistema complexo como o nosso, está no DNA da cadeia. A droga é uma chaga, um comércio, representa dinheiro e mais crime. Ela chega ao sistema por um preço muito mais caro. Quem usa, fica devendo e vai pagar. Vai para a rua cometer mais crimes. O preço que a sociedade paga é alto — alerta o promotor de execução criminal Alexander Thomé.
No mês de setembro, na cadeia com a maior população carcerária do Estado, o Presídio Central, em Porto Alegre, foram apreendidos 9,5 quilos de drogas (7,8 quilos de maconha, 1,6 de cocaína e 110 gramas de crack). O tipo de entorpecente localizado ali representa a realidade em todo o sistema. A maconha é a droga mais localizada nas prisões do RS, seguida pela cocaína e, por último, o crack. Do total encontrado, a maior parte foi fruto de arremesso ou estava nos arredores da cadeia: 9,1 quilos. O restante (400 gramas) foi encontrado com os presos.
Além dos arremessos, segundo a Seapen, os entorpecentes são encontrados em sacolas (mantimentos entregues por familiares). Também existem episódios envolvendo prestadores de serviços, flagrados com entorpecentes e celulares. Em julho, no Penitenciária Estadual de Rio Grande, no sul do Estado, um agente da unidade foi preso no momento em que tentava ingressar no local com drogas. Ele já vinha sendo monitorado pela equipe da Superintendência dos Serviços Penitenciários. Os drones também têm sido usados pelos grupos criminosos como meio para levar os entorpecentes aos detentos.
Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, Christiane Russomano Freire concorda que a crise gerada pela pandemia foi um dos fatores para impulsionar o ingresso de drogas . Mas defende que o momento evidencia que os familiares não são os principais responsáveis pelo ingresso de drogas nas cadeias.
— Além das lideranças, duas coisas mantêm o sistema sobre controle: visita e droga. Obviamente, o fato de as visitas estarem suspensas desde março faz com que haja demanda, necessidade maior do consumo de drogas. Isso significa que vão buscar formas para a entrada. Mas o volume maior não entra pela mão dos familiares e isso fica claro. Se aumentaram as apreensões, com certeza deve ter aumentado o volume que ingressou — afirma.
Para tentar frear essas estratégias do crime de levar mais drogas para dentro das prisões, os agentes passaram a intensificar os pentes-finos, tanto nos mantimentos como dentro das unidades. Uso de tecnologia e inteligência, além de intensificação dos protocolos de revistas, de controles de arremessos e as operações são apontados como fatores para elevar as apreensões.
— Ainda está longe do ideal, mas temos certeza de que estamos impedido cada vez mais o ingresso desses ilícitos. No Interior, criamos barreiras físicas na área do pátio, com telas. É uma medida simples e eficiente. Estamos buscando recursos para investir mais em tecnologia. É de se destacar também que nossos agentes têm conseguido fazer esse aumento de apreensões num momento de efetivo reduzido, por conta da pandemia — afirma o secretário da Administração Penitenciária Cesar Faccioli.
Desafios
A pesquisadora Christiane defende que, enquanto houver superlotação, o crime utilizará o sistema prisional como meio para se fortalecer e arregimentar novos integrantes. Neste cenário, sem enfrentar a elevação da massa carcerária, a especialista considera que nenhuma iniciativa será eficiente.
— As pessoas entram no sistema primárias e saem de lá profissionais. Lá dentro vão aderir a uma vida criminosa. A gestão prisional não está no maior ou menor controle de drogas e celulares, e sim em reduzir a população carcerária. É humanamente impossível fazer a gestão de um sistema superlotado dessa forma. É até injusto para os gestores prisionais atribuir a eles uma tarefa inglória — analisa.
Na visão do promotor Thomé os números refletem que houve melhora no controle por parte do Estado no ingresso de ilícitos. Mas o membro do Ministério Público também pondera que a superlotação eleva a tensão do sistema e faz com que o consumo aumente. Ressalta que a sociedade como precisa assumir a responsabilidade sobre o sistema prisional e entender os reflexos que ele gera do lado de fora.
— Um sistema melhor, com mais mecanismos de ressocialização, menos drogas, mais trabalho, mais assistência, mais presença do Estado, vai resultar em menos problemas na rua. Solução mágica não existe. O importante é ter ações e fazer esse enfrentamento — analisa.
Apreensões inusitadas
A descoberta da mesma estratégia para tentar ingressar drogas na Penitenciária Estadual de Rio Grande, no sul do RS, levou 13 pessoas a serem detidas há cerca de duas semanas. Porções de 50 gramas de maconha estavam escondidas em fundos falsos dentro de sacolas, que seriam repassadas aos presos. A apreensão foi antecipada pelo setor de inteligência da penitenciária. Os agentes souberam que uma sacola havia ingressado na unidade com drogas escondidas. Como a primeira tentativa deu certo, os presos se organizaram para a segunda leva, em quantidade maior. No dia 20 de outubro, 10 mulheres e três homens acabaram detidos ao fazerem a entrega.
— Temos scanner corporal (equipamento que detecta materiais junto ao corpo). Por isso, geralmente encontramos situações bem inusitadas nas sacolas. Além desse caso, que foi nas sacolas mesmo, já encontramos drogas em carnes, margarina, salsicha, chinelos. Usamos nossa área de inteligência para descobrir as novas estratégias. É um gato e rato constante —diz o diretor da unidade, Leandro Suanes.
Outros casos
Sabão
Ao longo de 2020, a engenhosidade para tentar fazer com que os entorpecentes ingressem nas prisões tem chamado a atenção. Arremessos de calçados e de bolas, compartimentos secretos dentro de materiais de higiene e de alimentos. Quatro dias antes da apreensão no Vale do Caí, duas mulheres foram presas na Penitenciária Estadual de Santa Maria, na Região Central. Foram descobertos 38,2 gramas de maconha escondidos dentro de barras de sabão. Para isso, foram confeccionados compartimentos secretos para acomodar a droga.
Aparelho de barbear
Em setembro, duas mulheres foram detidas no mesmo dia após tentarem entregar maconha no Presídio de Santiago. Elas usaram a mesma técnica: esconderam a droga das hastes de aparelhos de barbear. A primeira a ser descoberta é mãe de um preso carregava 10 aparelhos. A segunda foi a irmã de um detento, que levava oito unidades. Durante a inspeção das sacolas, os agentes desconfiaram porque os itens pareciam danificados.
Salsicha e ensopado
Uma das estratégias é tentar esconder os entorpecentes dentro dos alimentos. Em setembro, foram encontrados 70 gramas de maconha escondidos dentro de salsichas na Penitenciária de Rio Grande, no sul do RS. Em agosto, uma jovem acabou sendo detida no Presídio Estadual de São Luiz Gonzaga, no Noroeste, por transportar um pote de ensopado com pedras de crack, que seria entregue a um preso.
Calçados
Outra modalidade que vem se repetindo em algumas casas prisionais é a tentativa de arremessas drogas dentro de calçados. No início de outubro, no Presídio Estadual São Francisco de Assis, foi recolhido um par de tênis no telhado da galeria. Dentro do calçado, havia maconha, um celular e dois chips. Em agosto, na Penitenciária Modulada de Osório, no Litoral Norte, os policiais impediram o ingresso 1,9 quilos de maconha em pares de tênis. Dois dias depois, foram encontrados mais 3,5 quilos da droga arremessadas para dentro da unidade.