Quando alguém da família entregava poucas moedas a um morador de rua, já podia se preparar para enfrentar as críticas de Kauê Borile Weirich Xavier. O adolescente de 16 anos se indignava, pois entendia que não era suficiente para comprar comida. Era frequente esvaziar a geladeira da casa da mãe ou do pai e distribuir o que encontrava para quem ocupava as calçadas. Apesar da pouca idade, acreditava que transformaria o mundo. E, para isso, queria ser músico.
Desde a semana passada, quando passou a lidar com a falta do filho — o adolescente foi assassinado na zona sul de Porto Alegre por dois jovens que considerava amigos — Jacques Vianna Xavier, 49 anos, tem tentado se apegar nesse desejo do adolescente. O advogado lembra das vezes em que Kauê entrava pela porta de casa chorando. Não aceitava viver em um mundo onde as pessoas passassem fome.
Inconformado com a perda, nas ruas por onde o adolescente andava, o pai descobre histórias sobre Kauê. Era comum o adolescente entregar as próprias roupas para os moradores. Chegou a doar até o moletom da escola ao encontrar um andarilho com frio.
— As coisas sumiam da geladeira. Ele me dizia: “Comi, estava com fome”. E agora eu saio na rua e eles me dizem: “O Kauê trazia carreteiro para mim”. É duro demais, como pai e como ser humano. Quando uma pessoa boa vai embora desse mundo, faz falta. Estamos tirando força dos amigos dele. Principalmente dos moradores de rua, de pessoas que ele ajudava. É consolador ouvir o que ele fazia pelos outros. Não via diferença nas pessoas. Só via seres humanos — descreve o pai.
Com a família, o garoto era amoroso, gostava de abraçar e beijar. Não hesitava em dizer que amava as pessoas. Dois dias antes de ser assassinado, recebeu um telefonema da avó paterna. Ela sugeriu que o neto se tornasse cientista, para ajudar a salvar pessoas. Kauê respondeu que já tinha escolhido outro caminho: seria músico. Fazia aulas de guitarra duas vezes por semana, e acreditava que podia fazer a diferença na vida das pessoas assim.
— É uma perda tão grande, não só para mim. Não é justo que tenham tirado ele da gente e de todo mundo que está na volta — diz o pai, emocionado.
No sábado à noite, um dia após o enterro do filho, o advogado observava pela janela enquanto os garis trabalhavam em frente ao prédio. Pensou que talvez pudesse preparar algo para eles comerem. Recuou da ideia, diante da exaustão dos últimos dias. Foi quando as palavras inconformadas de Kauê se materializaram dentro dele. “Pai, vai deixar de dar comida para alguém por preguiça?”. Jacques preparou sanduíches e desceu até a rua.
Três dias depois, junto das outras duas filhas, o advogado preparou uma sacola de sanduíches, dessa vez para distribuir às pessoas que vivem na rua, no Centro Histórico. Nesta quarta-feira (2), lotou o fogão com panelas e preparou marmitas para entregar a quem está com fome.
— Precisa ser feito. E não é só pelo meu filho, é porque as pessoas precisam. As pessoas têm de ajudar o Médico Sem Fronteiras, tem de doar órgãos, doar sangue. Têm de abraçar, beijar. Dizer que amam. Podem nunca mais ter a oportunidade de dizer. É algo que precisa ser feito — emociona-se.
Investigação
Segundo o delegado Raul Vier, da 2ª Delegacia de Polícia para o Adolescente Infrator, a motivação do caso ainda está sendo investigada. Dois adolescentes estão apreendidos e confessaram participação no crime.
A aposta da polícia é em uma análise técnica que está sendo realizada nos celulares dos três adolescentes. Estão sendo avaliadas mensagens, áudios e vídeos trocados entre o trio. Também estão sendo ouvidos familiares e amigos.
Ainda conforme o delegado, despertou a atenção da polícia a crueldade do crime e o fato de que o adolescente de 15 anos já tinha histórico de ameaça contra familiares.
— Chamou a atenção a frieza com que os infratores confessaram a morte do próprio amigo, com detalhes cruéis e extremamente violentos. O mais jovem dos autores constantemente ameaça os seus próprios familiares de morte, referindo que irá matá-los a golpes de facão — disse.