No estacionamento de um shopping, na zona norte de Porto Alegre, uma mulher mostra um veículo modelo 2018. O HB20 que ela oferece por R$ 33 mil é roubado e clonado. Segundo a Polícia Civil, faz parte do esquema que seria comandando de dentro da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). A negociação foi gravada no primeiro semestre deste ano por uma equipe da RBS TV. Na última semana, 22 pessoas foram indiciadas por suspeita de integrarem a organização criminosa.
Durante a negociação, mostrada neste domingo (18) no Fantástico, a mulher não sabe que está sendo gravada por câmera escondida. Ela explica que não pode reduzir o valor e que só está mostrando o veículo porque o dono do carro não conseguiu comparecer.
— Ele quer R$ 33 mil no carro? — questiona o repórter.
— É. Daí é com ele — responde a mulher.
— Toda a negociação é com ele?
— É...
Essa mesma mulher acabaria sendo uma das presas pela investigação. O homem apresentado por ela como seu familiar é o apenado Fernando Martins Marques, 41 anos, com mais de 60 anos de condenação, que está detido na Pasc. Ele é apontado pela polícia como líder do esquema. Conforme o delegado Rafael Liedtke, do Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), apenas o preso teria lucrado mais de R$ 1 milhão com o esquema em dois anos.
De dentro da cadeia, segundo a polícia, Marques comandava o esquema em busca de vítimas na internet. Entre elas, um morador da Serra, que havia feito anúncio de caminhonete por R$ 73 mil. Ele foi contatado pela quadrilha. Sem negociar muito, um homem, identificado como o líder do grupo, disse que compraria o veículo.
— Ele disse para eu levar a caminhonete para Porto Alegre. Disse que a esposa dele estava doente e se recuperando do câncer e que ela se apaixonou pelo carro e que ele pagaria o que fosse. Daí eu e meu filho fomos para Porto Alegre — recorda.
O criminoso marcou encontro no bairro Jardim Botânico. Mas era uma armadilha para roubar o veículo, como revelaram escutas telefônicas autorizadas pela Justiça.
— Larguei mastigado. É que nem tirar doce de criança. O cara é lá de outra cidade, o cara vem do Interior, e vem trazer a caminhonete pra vender. Vocês estão vendo a caminhonete na frente do prédio, né? É que nem tirar doce de criança. Se reagir, dá um tiro na cara! — diz o preso em áudio obtido pela polícia.
As escutas revelaram que a ordem do chefe da quadrilha era executar vítimas se houvesse reação.
— Vocês estão com um ferro (arma) ou dois? — questiona o homem, identificado como líder do grupo.
— Tamo (sic) com um só — responde o comparsa.
— Tá (sic), mas é o suficiente. Se reagir, dá-lhe um tiro! É nóis!
Nesse caso, a polícia esperava os criminosos e conseguiu evitar o roubo. Todos foram presos em flagrante, inclusive um motorista de aplicativo que levava os ladrões para o assalto. No fim de julho, a polícia desencadeou operação contra a quadrilha. Os 22 presos foram indiciados por organização criminosa, estelionato, uso de documentos falsos, porte e posse de armas, adulteração de sinal e roubo de veículos.
De dentro da Pasc, o criminoso escolheria um carro anunciado na internet em site de classificados. Depois, entraria em contato com a vítima por celular e forjaria negociação. O preso da Pasc, segundo a polícia, apresentava-se como militar e dizia que a esposa estava doente. Era combinado local para a compra, mas quem aparecia eram assaltantes armados, que levavam os automóveis das vítimas.
Vítimas que compraram carros roubados sem saber
Ao longo da investigação, a polícia localizou mais de 20 vítimas da quadrilha. Um morador da Região Metropolitana, após ficar desempregado, investiu o que tinha em um veículo para usar como motorista de aplicativo. Ele comprou o carro por R$ 31 mil, mas quando foi no cartório passar os documentos, foi avisado de que tudo era falso.
— A minha sensação foi de desespero total, porque anos trabalhando. Não tinha mais de onde tirar dinheiro. Um filho pequeno de 11 meses. Perdi trinta e um mil. Não tinha o que fazer mais — relata.
Dias antes, os verdadeiros donos do carro haviam caído na conversa e na armadilha do presidiário.
— Levamos o carro, só que quando a gente chegou era um indivíduo armado. Colocou o revólver na minha cintura, na minha barriga. Disse que eu tinha perdido, e a gente acabou perdendo o carro — conta a mulher, que achava que estava vendo o carro da família.
Na operação, dois celulares foram encontrados na cela do detento. Em uma das escutas obtidas pela polícia, o criminoso debocha das vítimas.
— Dinheiro é mato, cara, cansa de pegar esses trouxas aí, tu não tem noção — afirma.
Clonagem e anúncio
Depois de roubar os carros, os criminosos levavam os veículos para depósitos, onde os chassis, vidros e outros sinais identificadores eram alterados. Com a clonagem pronta, ele usavam as mesmas páginas de classificados da internet para oferecer os veículos.
Aos interessados nos carros anunciados, o criminoso se identificava como o proprietário. O relato às vítimas era semelhante. Contava que a família havia crescido, que a esposa estava doente e que precisava vender o carro. Na sequência, marcava local para mostrar o veículo. Foi assim durante o contato do criminoso com a reportagem.
— Então, amanhã de tarde, quer dar uma olhada no carro? — perguntou o preso, fazendo-se passar pelo proprietário.
— Que horário mais ou menos? — respondeu o repórter, sem se identificar.
— Eu só consigo te mostrar no fim da tarde, tipo assim, quatro e meia, cinco horas, tem que ser um lugar bom para os dois — disse o criminoso.
Em todos os casos, pouco antes da vítima chegar ao local acertado, o criminoso afirmava que não poderia ir, por conta de uma reunião de trabalho e que uma familiar levaria o veículo. Era a estratégia para manter a negociação, já que ele estava preso.
— Essas mulheres são sempre na faixa etária de 20 a 30 anos. Mulheres bem vestidas, ou seja, mulheres que possam ludibriar as vítimas — explica o delegado Rafael Liedtke.
Da mesma forma, à reportagem o criminoso informou que não poderia comparecer e que a irmã iria no seu lugar. Durante o encontro com o repórter, a mulher chegou a telefonar para o falso proprietário.
— Oi mano, tô (sic) aqui com o moço, aqui. Sim. Ele tá (sic) olhando. Adorou o carro — disse.
Após a gravação, a equipe de reportagem deixou o local, informando que entraria em contato na sequência.