— Às vezes, uma peça como uma porta, que custa RS 5 mil, eles te pagam R$ 2,5 mil para consertar.
O relato do representante de uma oficina credenciada para o conserto de veículos faz parte do relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa, que apura supostas irregularidades de seguradoras no Rio Grande do Sul. Além do uso de peças não genuínas e do reparo de itens de segurança, o documento aponta possível formação de cartel e fomento ao roubo de veículos — por meio de peças. As seguradoras admitem utilizar peças sem logomarca da montadora, mas negam que a segurança seja afetada. O dossiê deve ser votado na quarta-feira (4).
Instalada em 29 de novembro, a comissão ouviu 18 proprietários que representam, pelo menos, 40 oficinas do Estado. Foram encontrados indícios de irregularidades envolvendo 10 seguradoras. No entanto, o relatório aponta que a prática é geral. Do outro lado, as empresas argumentam que usam itens originais produzidos nas mesmas fábricas das genuínas e negam uso de peças paralelas (sem procedência). Na comissão, o proprietário de uma oficina relata outra realidade.
— Já consertei até roda faltando pedaços — diz.
Documentações enviadas por 27 oficinas (de 472 solicitadas) dos consertos feitos em 2017 foram esmiuçados. Na segunda-feira (21), força-tarefa na Capital flagrou oficinas com peças não homologadas, com logomarcas raspadas e recuperação de itens de segurança. Relator da comissão, o deputado Tiago Simon (MDB) entende que irregularidades foram evidenciadas com essa vistoria.
— Existe um cartel com poder econômico, articulado, sem nenhum serviço de proteção ao cliente. Em função da exigência da lucratividade acabam lesando o consumidor e colocando em risco a vida das pessoas. É pratica generalizada as seguradoras imporem à sua rede credenciada tanto a recuperação de peças e o que é mais grave de itens de segurança.
Dona de um Cobalt, Patrícia da Silva, 42 anos, procurou a CPI ao saber da apuração. Ela ingressou com uma ação judicial contra a seguradora e a oficina que fizeram reparos no veículo. O carro segue com problemas mecânicos.
— Não se sabe o que foi feito no meu carro, o que eles trocaram ou não. Esses dias precisei frear e o cinto da minha mãe não funcionou. Como fica a minha segurança e da minha família? _ questiona.
Não se sabe o que foi feito no meu carro, o que eles trocaram ou não. Esses dias precisei frear e o cinto da minha mãe não funcionou. Como fica a minha segurança e da minha família?
PATRÍCIA DA SILVA
Consumidora
Presidente do Sindicato das Seguradoras do Rio Grande do Sul (Sindsergs), Guacir de Llano Bueno defende que peças originais são seguras e que isso é feito para reduzir o custo, tornando o serviço acessível a mais pessoas.
— A gente usa peças reconhecidamente seguras, adequadas. E por que a gente usa as originais? Por que sai mais barato para a operação do nosso consumidor. São feitas nas mesmas fábricas, apenas sem a logotipia da montadora — afirma.
Os levantamentos apontam ainda para a compra de veículos em leilões por criminosos que pretendem fazer uso da documentação e de peças para "esquentar" carros roubados. A CPI constatou que, de 1,4 mil compradores em leilões, durante cinco meses de 2017 no RS, 14% tinham antecedentes por crimes envolvendo veículos.
Se aprovado pela comissão, o relatório segue para votação no plenário da Assembleia Legislativa, ainda sem data. Embora não tenha poder de indiciamento criminal, a CPI repassa o que foi apurado para outros órgãos. Os autos de infração produzidos Procon-RS, durante a força tarefa, devem compor as sugestões da CPI, que analisa se condicionará o indiciamento das seguradoras à conclusão desses processos administrativos.
Recomendações
A comissão deverá propor ao MP que seja firmado um termo de ajustamento de conduta (TAC) com todas as seguradoras que estabeleça critérios técnicos sobre itens de segurança, para impedir que sejam reparados.
Algumas seguradoras te bloqueiam, mesmo sendo credenciado, porque o teu custo médio está mais alto. Então, ela está te incentivando, na verdade, a tentar baixar o custo"
DONO DE OFICINA
Também deve ser sugerido outro TAC onde as seguradoras se comprometam com a utilização de peças homologadas pelas montadoras e que o consumidor receba um comprovante detalhado das peças utilizadas no conserto.
Ainda deve ser proposta a criação de lei que permita a rastreabilidade das peças de veículos, por meio da numeração, e uma ação coletiva para os clientes que tiveram instaladas peças não homologadas pelas montadoras tenham direito à substituição.
Fomento à criminalidade por meio do roubo de veículos
Outro aspecto investigado é o destino de veículos envolvidos em acidentes, sob a suspeita de que possam estar sendo usados por criminosos para "esquentar" veículos roubados. A comissão constatou que o problema inicia com a falta de registro dos danos causados nas colisões. Apenas a Polícia Rodoviária Federal (PRF) faz o preenchimento de um boletim que determina a gravidade da avaria no automóvel. Sem o registro, nos veículos segurados quem define a gravidade é a seguradora.
Quando o valor do conserto atinge 75% da tabela Fipe, em geral considera como perda total e encaminha o veículo para leilão.A comissão analisou 6 mil nomes de pessoas que compraram carros de seguradoras em leilões, entre agosto e dezembro de 2017, no Estado. A análise foi restrita às pessoas físicas, residentes no RS, o que resultou em 1,4 mil. Constatou-se que 170 tinham passagens pela polícia por crimes como adulteração e receptação de veículos, além de roubos e furtos de automóveis.
Desses carros, 22% voltaram para o mercado, sem o registro da monta (que indica o tipo de dano causado no acidente). Isso significa que quem comprar o veículo não vai saber que ele foi danificado. Para que o esquema seja possível, a transferência é feita para outros municípios, inclusive em outros Estados.
O que já foi feito
— Instalada em 29 de novembro, a comissão ouviu 18 proprietários de pelo menos 40 oficinas.
— Foram encontrados indícios de irregularidades envolvendo 10 seguradoras.
— Documentações enviadas por 27 oficinas sobre consertos feitos em 2017 foram esmiuçados na CPI.
— No dia 21, operação vistoriou oficinas em Porto Alegre. Foram encontradas irregularidades em três empresas, nos consertos de 18 veículos.
— Foi constatado que, de 1,4 mil compradores em leilões, durante cinco meses de 2017, 14% tinham antecedentes por crimes envolvendo veículos.
Formação de cartel e impostos
Para a CPI, existe uma relação de formação de cartel porque apenas 2% das 12 mil oficinas do RS estão credenciadas. Com isso, seria possível induzir donos de oficinas a reduzirem os custos para manterem a clientela de segurados. A comissão ouviu uma série de depoimentos que serão encaminhados ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
A CPI também apurou possível sonegação fiscal no envio de peças, compradas pelas seguradoras em outros Estados, para as oficinas. A Receita Estadual afirmou, no entanto, que a partir do que estabelece a legislação tributária, o entendimento é de que as seguradoras não são classificadas como contribuintes do ICMS e sim como prestadoras de serviços. Por isso, afirma que "não há embasamento legal para exigir o recolhimento do imposto nos casos em que a seguradora repasse peças de reposição para as oficinas instaladas no Estado".
Para a comissão, isso aponta duas possibilidades: de que os veículos estejam sendo consertados com peças de carros roubados ou que parte das peças do veículo danificado são repassadas para outro idêntico roubado. Então passa a circular como se fosse o primeiro após o conserto. Ano passado, 17 mil veículos foram roubados no RS e, desses, segundo a Polícia Civil, cerca de 60% recuperados. Os demais não foram localizados.
— Quem compra um carro nessa situação não faz ideia do que está adquirindo. Esse mercado pode estar consumindo milhares de veículos roubados todo o ano no RS e que não são recuperados — afirma Bacci.
A comissão também defende que a transferência dos veículos acidentados _ quando os segurados são indenizados _ para o nome das seguradoras seja feita no RS, e não para São Paulo como ocorre hoje, o que permitiria uma arrecadação de R$ 5 milhões por ano. A CPI também argumenta que os órgãos de trânsito precisam realizar os registros de acidentes, com a classificação dos danos, conforme prevê resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A Brigada Militar e a EPTC, em depoimento à CPI, confirmaram que não fazem o procedimento e que estão buscando cumprir a legislação.
Dicas para o consumidor:
- As seguradoras utilizam nomenclaturas que podem confundir os clientes. As peças são classificadas em genuínas (com a logomarca da montadora), originais e genéricas. Embora utilize o termo original, essa peça não é homologada pela montadora. Isso pode acarretar na perda da garantia do veículo, já que a montadora desconhece a qualidade da peça.
- É direito estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, artigo 21, que ele tenha esse carro restaurado com peças "originais adequadas e novas, ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante". Caso contrário, o consumidor precisa autorizar o reparo.
- O consumidor tem direito de escolher oficina de confiança para fazer o conserto.
Contraponto:
Representante do Sindicato das Seguradoras do Rio Grande do Sul (Sindsergs), Guacir de Llano Bueno, discorda dos apontamentos feitos pela CPI. Confira os argumentos do presidente da entidade sobre alguns pontos do relatório:
Tipos de peças usadas
"As peças genuínas e originais são fabricadas pelas mesmas máquinas, na mesma indústria, só que as genuínas levam a logotipia da montadora e as originais não. Elas tem as mesmas características, são peças de mesma segurança e eficácia. As seguradoras trabalham com ambas, mas mais com as originais porque as genuínas são mais caras. Mas as paralelas nunca."
Sempre vamos procurar o menor custo, mas não abrimos mão da qualidade e segurança.
GUACIR BUENO
Sindicato das Seguradoras do Rio Grande do Sul (Sindsergs)
Custo reduzido
"Seguradoras são gestoras de um dinheiro alheio, que é constituído por um fundo comum. É claro que operamos com menor custo para que todo mundo seja beneficiado. Assim se diminui o preço do seguro e possibilita a outras pessoas aderirem ao produto. Sempre vamos procurar o menor custo, mas não abrimos mão da qualidade e segurança."
Relação com oficinas
"A responsabilidade técnica do serviço é da oficina, não da seguradora. Temos ouvidorias, um canal aberto com o cliente, para casos eventuais de reclamações. Em 2017, no RS as seguradoras fizeram mais de 262,5 mil reparos de veículos. Como conceito, como padrão, queremos a coisa mais barata. Se pode recuperar, recupera, mas se houver problema na segurança não. As oficinas reclamam de pressão. Se o preço está caro vamos querer que baixe sim. Mas o cliente tem que sair satisfeito."
Cartel
"Mantemos uma parceria para o bem com as oficinas e não para o mal. Só 2% são referenciadas porque somos exigentes e queremos o melhor para nosso consumidor. A oficina que não cumpre prazo, que cobra caro, que destrata o cliente, não vai estar na nossa lista. São oficinas sérias. O cliente tem direito de levar onde quiser, mas se o custo estiver muito acima do normal, precisa arcar com a diferença. As nossas companhias são competidoras entre elas. É exatamente o oposto da cartelização."
Transferências de veículos
"Somos favoráveis e apoiamos a qualificação dos agentes e policiais para que esse registro seja feito no Estado. As seguradoras são vítimas também. A gente é obrigado a mandar a documentação para São Paulo porque lá já há uma regulamentação sobre a classificação da monta."