O transtorno provocado por um acidente, no centro de Porto Alegre, em 28 de fevereiro do ano passado, transformou-se em dilema sem prazo de término para Patrícia da Silva, 42 anos. O marido dela, Charles da Silva, 40 anos, seguia pela Rua Washington Luiz, quando colidiu o automóvel. Quase um mês depois, o Cobalt saiu da oficina, mas apresentava problemas nas luzes do painel, no airbag e o motor falhava. O veículo, ano 2012, chegou a fazer 3km com um litro de gasolina. Ela prestou depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apura supostas irregularidades por parte de seguradoras de veículos no Rio Grande do Sul.
— Ele te induzem a deixar nas oficinas autorizadas. Se eu tivesse levado numa concessionária tinham dado perda total porque o conserto ultrapassaria a tabela Fipe. Mas quiseram consertar. Passei um ano com o carro falhando.
Patrícia diz que gastou mais de R$ 2 mil para tentar entender porque o carro não funcionava. Descobriu que o catalisador estava fora dos padrões, as longarinas haviam sido recuperadas, assim como o chicote e o ar condicionado. Até hoje, não tem certeza se os airbags serão Blitz em oficinas apura fraudes contra clientes de seguros de carros na Capital acionados em caso de acidente.
— O que me preocupa é a segurança. Como eu vou vender o veículo nesse estado? Eu não tenho coragem de saber que outra família pegou meu carro e está andando por aí, correndo risco.
Financeiramente, para a oficina é melhor recuperar peça do que trocar, porque o valor da mão de obra aumenta muito mais na recuperação da peça
DONO DE OFICINA
A CPI constatou com o caso de Patrícia e de outros que a utilização de peças não homologadas seria prática comum. A utilização foi verificada tanto por orçamentos enviados por oficinas, como por depoimentos de proprietários de oficinas. Eles relataram que recebem valores de mão de obra abaixo do mercado. Por isso, compensam com peças de menor custo. "O cliente nunca fica sabendo o que é refeito", relatou um dos ouvidos.
Os donos de oficinas ainda disseram ser alvo de pressão por parte das seguradoras e temem perder clientes. O presidente da CPI pretende sugerir que uma nova comissão para acompanhar possíveis retaliações às oficinas.
— Consumidores estão sendo lesados para que seguradoras reduzam custo. E as oficinas, se não seguem a orientação, deixam de receber clientes — acusa o deputado Enio Bacci, presidente da CPI.
Força tarefa
Na segunda-feira (21) uma operação, capitaneada pelo Procon-RS, vistoriou oficinas em Porto Alegre. Foram encontradas irregularidades nas três empresas, nos consertos de 18 veículos. Em uma das oficinas foi encontrado um furgão da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), que tinha na nota peças genuínas, mas no veículo estavam itens usados. O dono da oficina foi autuado e responderá a inquérito na Polícia Civil por estelionato. Contra os demais, foram instaurados processos administrativos. A documentação recolhida é analisada pelo Procon-RS.
Fomento à criminalidade
Outro aspecto investigado é o destino de veículos envolvidos em acidentes, sob a suspeita de que possam estar sendo usados por criminosos para "esquentar" veículos roubados. A comissão constatou que o problema inicia com a falta de registro dos danos causados nas colisões. Apenas a Polícia Rodoviária Federal (PRF) faz o preenchimento de um boletim que determina a gravidade da avaria no automóvel. Sem o registro, nos veículos segurados quem define a gravidade é a seguradora. Quando o valor do conserto atinge 75% da tabela Fipe, em geral considera como perda total e encaminha o veículo para leilão.
A comissão analisou 6 mil nomes de pessoas que compraram carros de seguradoras em leilões, entre agosto e dezembro de 2017, no Estado. A análise foi restrita às pessoas físicas, residentes no RS, o que resultou em 1,4 mil. Constatou-se que 170 tinham passagens pela polícia por crimes como adulteração e receptação de veículos, além de roubos e furtos de automóveis. Desses carros, 22% voltaram para o mercado, sem o registro da monta (que indica o tipo de dano causado no acidente). Isso significa que quem comprar o veículo não vai saber que ele foi danificado. Para que o esquema seja possível, a transferência é feita para outros municípios, inclusive em outros Estados.
Às vezes, uma peça como uma porta, que custa RS 5 mil, eles te pagam R$ 2,5 mil para consertar.
DONO DE OFICINA
Para a comissão, isso aponta duas possibilidades: de que os veículos estejam sendo consertados com peças de carros roubados ou que parte das peças do veículo danificado são repassadas para outro idêntico roubado. Então passa a circular como se fosse o primeiro após o conserto. Ano passado, 17 mil veículos foram roubados no RS e, desses, segundo a Polícia Civil, cerca de 60% recuperados. Os demais não foram localizados.
— Quem compra um carro nessa situação não faz ideia do que está adquirindo. Esse mercado pode estar consumindo milhares de veículos roubados todo o ano no RS e que não são recuperados — afirma Bacci.
A comissão também defende que a transferência dos veículos acidentados _ quando os segurados são indenizados _ para o nome das seguradoras seja feita no RS, e não para São Paulo como ocorre hoje, o que permitiria uma arrecadação de R$ 5 milhões por ano. A CPI também argumenta que os órgãos de trânsito precisam realizar os registros de acidentes, com a classificação dos danos, conforme prevê resolução do Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A Brigada Militar e a EPTC, em depoimento à CPI, confirmaram que não fazem o procedimento e que estão buscando cumprir a legislação.
Dicas para o consumidor:
- As seguradoras utilizam nomenclaturas que podem confundir os clientes. As peças são classificadas em genuínas (com a logomarca da montadora), originais e genéricas. Embora utilize o termo original, essa peça não é homologada pela montadora. Isso pode acarretar na perda da garantia do veículo, já que a montadora desconhece a qualidade da peça.
- É direito estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, artigo 21, que ele tenha esse carro restaurado com peças "originais adequadas e novas, ou que mantenham as especificações técnicas do fabricante". Caso contrário, o consumidor precisa autorizar o reparo.
- O consumidor tem direito de escolher oficina de confiança para fazer o conserto.
Contraponto:
Representante do Sindicato das Seguradoras do Rio Grande do Sul (Sindsergs), Guacir de Llano Bueno, discorda dos apontamentos feitos pela CPI. Confira os argumentos do presidente da entidade sobre alguns pontos do relatório:
Tipos de peças usadas
"As peças genuínas e originais são fabricadas pelas mesmas máquinas, na mesma indústria, só que as genuínas levam a logotipia da montadora e as originais não. Elas tem as mesmas características, são peças de mesma segurança e eficácia. As seguradoras trabalham com ambas, mas mais com as originais porque as genuínas são mais caras. Mas as paralelas nunca."
Sempre vamos procurar o menor custo, mas não abrimos mão da qualidade e segurança
GUACIR BUENO
Sindicato das Seguradoras do Rio Grande do Sul (Sindsergs)
Custo reduzido
"Seguradoras são gestoras de um dinheiro alheio, que é constituído por um fundo comum. É claro que operamos com menor custo para que todo mundo seja beneficiado. Assim se diminui o preço do seguro e possibilita a outras pessoas aderirem ao produto. Sempre vamos procurar o menor custo, mas não abrimos mão da qualidade e segurança."
Relação com oficinas
"A responsabilidade técnica do serviço é da oficina, não da seguradora. Temos ouvidorias, um canal aberto com o cliente, para casos eventuais de reclamações. Em 2017, no RS as seguradoras fizeram mais de 262,5 mil reparos de veículos. Como conceito, como padrão, queremos a coisa mais barata. Se pode recuperar, recupera, mas se houver problema na segurança não. As oficinas reclamam de pressão. Se o preço está caro vamos querer que baixe sim. Mas o cliente tem que sair satisfeito."
Cartel
"Mantemos uma parceria para o bem com as oficinas e não para o mal. Só 2% são referenciadas porque somos exigentes e queremos o melhor para nosso consumidor. A oficina que não cumpre prazo, que cobra caro, que destrata o cliente, não vai estar na nossa lista. São oficinas sérias. O cliente tem direito de levar onde quiser, mas se o custo estiver muito acima do normal, precisa arcar com a diferença. As nossas companhias são competidoras entre elas. É exatamente o oposto da cartelização."
Transferências de veículos
"Somos favoráveis e apoiamos a qualificação dos agentes e policiais para que esse registro seja feito no Estado. As seguradoras são vítimas também. A gente é obrigado a mandar a documentação para São Paulo porque lá já há uma regulamentação sobre a classificação da monta."