A promessa de inauguração plena de um presídio que mantém vazias 2,4 mil vagas praticamente prontas se arrasta há seis anos. Perpassa três governos sem se cumprir, diante do sistema em colapso.
Esse é o cenário da Penitenciária de Canoas, anunciada como a solução para a desativação do caótico Presídio Central de Porto Alegre. Trata-se de projeto lançado no governo Yeda Crusius (PSDB), executado na gestão de Tarso Genro (PT) e cuja ocupação começou durante o mandato de José Ivo Sartori (PMDB). Hoje, a mais recente previsão estima que em seis meses as vagas ainda não preenchidas comecem a ser ocupadas. O início da operação dará fôlego diante do sufoco com o déficit penitenciário, mas ainda longe de ser a solução do sistema.
– Passaram-se três governos e ainda não conseguimos ocupar plenamente uma unidade prisional, enquanto a necessidade atual é de se pensar na construção da próxima. Inaugurando Canoas ameniza a situação, mas não resolve o problema. Temos de planejar lá na frente – resume o coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público do Estado (MP), promotor Luciano Vaccaro.
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Uma série de percalços auxilia a compreender a demora na ocupação da penitenciária. O enredo começa em fevereiro de 2010, quando Yeda e o prefeito da cidade, Jairo Jorge (PT), assinaram acordo para erguer a casa prisional no conflagrado bairro Guajuviras em regime de construção inédito no Estado: parceria público-privada (PPP).
Mas mudou o governo, e Tarso abandonou a parceria com o setor privado. O então chefe do Piratini saiu em busca de recursos federais para a construção da casa prisional por valor mais baixo.
Em 2012, nascia o novo projeto, que hoje está de pé, ao custo de R$ 122 milhões e capacidade para 2,8 mil vagas. O governo contratou a Verdi Sistemas Construtivos para execução da obra, sem licitação. Isso porque era a única empresa que possuía a tecnologia necessária para erguer penitenciária em módulos. Mas o MP contestou a ausência de concorrência pública e fez nascer uma ação judicial que se arrastou por mais de um ano e manteve o projeto parado.
Máquina estatal anda devagar, crime gira rápido
Resolvida a pendência, a gestão petista prometeu a ocupação do complexo de Canoas para dezembro de 2014 como solução para o esvaziamento do Central. Não por coincidência, um pavilhão da maior casa prisional gaúcha seria demolido em vistas a sua desativação. Só que a transferência de apenados para a nova prisão não começaria no governo Tarso.
Um ano passou, e nova cadeia seguiu fechada. Apenas em março deste ano, detentos começaram a ser alocados na menor das quatro unidades da Penitenciária de Canoas, que suporta 393 homens. Na semana passada, 354 cumpriam pena no local.
– Canoas iria solucionar o sistema se tivéssemos seguido no mesmo ritmo de crescimento da população carcerária. Como o aumento foi muito alto, hoje já nasce lotada. A máquina estatal anda muito devagar, enquanto a do crime organizado gira bem rápido – observa a procuradora do Estado Roberta Siqueira, coordenadora do grupo interinstitucional que estuda a ocupação da cadeia.
Falta esgoto e contratação de agentes para ocupação
As três unidades que somam 2.415 vagas ainda não foram entregues pela construtora ao Estado. Há uma discussão sobre valores que teriam ficado pendentes, mas os prédios estão praticamente prontos. Segundo o secretário da Segurança Pública, Cezar Schirmer, 14 pontos ainda emperram a abertura das unidades – dois são essenciais.
O primeiro é a construção de subestação de tratamento de água e esgoto para atender aos três novos prédios, processo que está em fase de licitação. O segundo diz respeito à contratação de agentes penitenciários para atuar em Canoas. A Secretaria da Segurança Pública (SSP) também está licitando a empresa que produzirá as provas, e o edital do concurso deve ser lançado em novembro.
– A abertura dessas vagas envolve várias áreas do governo e também a prefeitura. Estamos trabalhando com afinco no que diz respeito à SSP e gestionando as demais para agilizar – garante Schirmer (leia entrevista com o secretário da Segurança).
O governo também tem de atender a exigências acertadas com o município, como, por exemplo, a instalação de bloqueador de celular nas imediações do complexo e a destinação de policiais militares para as guaritas de proteção externa. À prefeitura de Canoas, ainda resta fazer uma rua de acesso e as vias internas no complexo, obra que também está em fase de concorrência pública após a primeira tentativa ter resultado deserta.
– O processo licitatório é uma batalha, e a falta de recurso talvez tenha atrasado o projeto, mas o problema não são os seis anos, e, sim, o fato de o Estado não ter, independentemente de governo, planejamento do sistema prisional a longo prazo – diz o secretário de Segurança de Canoas, Alberto Kopittke.
Em dois anos, 5 mil presos a mais nas cadeias
O déficit prisional no Estado supera 10 mil vagas, e o Piratini, mesmo imerso em crise financeira, elevou a criação de espaço à prioridade de governo. Desde que assumiu a SSP, há pouco mais de um mês, Schirmer tenta agilizar processos de abertura de vagas que estavam paralisados. Entre eles, a conclusão da Penitenciária de Guaíba, que está 80% pronta, mas com as obras paradas há dois anos, e a criação de quatro unidades com 250 vagas cada em três cidades ainda não anunciadas por meio de permuta com a Companhia Zaffari.
Em menos de dois anos, mais de 5 mil apenados ingressaram no sistema penitenciário gaúcho. Em contrapartida, a criação de vagas se manteve praticamente estagnada e, apesar da alta nos encarceramentos, os índices de criminalidade dispararam.
– Nenhuma política de segurança pública funciona adequadamente sem um sistema prisional eficiente. Acontece que isso continua não sendo prioridade dos governos. Quando a população clama por segurança pública, o Estado investe em mais repressão, o que aumenta a demanda prisional sem que haja a preocupação com a construção de vagas, como se a atuação de um policial prendendo alguém em flagrante na rua resolvesse o problema. O problema está só começando – critica o juiz Sidinei Brzuska, da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre.
Apenas 4% dos detentos da Canoas 1 reincidem
Mesmo em ritmo lento, a Penitenciária de Canoas representa modelo revigorante para o Estado. Desde a inauguração da primeira e única unidade ativa do complexo, 762 detentos passaram pelas novas celas e 209 ganharam liberdade. Dentre eles, somente 4% reincidiram no crime. Em todo o sistema prisional gaúcho, o índice chega a 70%.
O baixo percentual não representa mera coincidência, mas o resultado da combinação de trabalho interinstitucional e investimento financeiro. O perfil de cada apenado que chega ao complexo passa pela definição de um grupo que envolve Defensoria Pública, Judiciário, Ministério Público, Procuradoria-Geral do Estado e Superintendência dos Serviços Penitenciários. Apenados com relação com facções têm ingresso à nova cadeia negado.
No local, cumprem pena trabalhadores, acusados de crimes sexuais, fiéis a alguma religião e aqueles que pela primeira vez na vida ingressam no sistema prisional. O modelo consiste na ressocialização para evitar que a prisão torne-se universidade do crime, como ocorre em outras cadeias controladas pelos presos – caso do Presídio Central.
Investimento elevado mas que se reverte em menos violência
Em Canoas, há aulas de Ensino Fundamental e Médio nos três turnos. Todos os detentos estudam e 85% trabalham na preparação da comida para a sua galeria, na lavagem das roupas, no cultivo da horta ou na produção de luvas para uma empresa via convênio.
– Sabemos que o sistema não tem recuperado ninguém e, em Canoas, queríamos fazer uma experiência pioneira para verificar qual seria o índice de reincidência quando houvesse presença massiva do Estado. O custeio é elevado, mas vale a pena – comenta a procuradora do Estado Roberta Siqueira.
O programa começa pela ausência absoluta de superlotação e passa, inclusive, pelo fornecimento de uniformes aos detentos. Todos vestem roupas de cor laranja pagas pelo Estado, cenário que remete às organizadas prisões norte-americanas. Há inclusive distinção entre celas para fumantes, e não se tem notícia de consumo de drogas.
– Não posso dizer que está bom porque estou preso, mas tenho todo o atendimento necessário. Em 14 anos dentro de cadeias, tentei estudar e não consegui. Agora, estou conseguindo. Aqui, qualquer um é tratado da mesma forma, dorme numa cama, tem seu material de higiene e oportunidade de serviço – conta o detento Luis Carlos Heissler, preso por tráfico de drogas, que acumula passagens pelo Central e pelas penitenciárias do Jacuí e de Montenegro.
Distante do poder paralelo do crime, o Estado fornece tudo ao detento e, como consequência, acumula gasto maior. Estima-se que um apenado do Central, onde imperam as facções, custe cerca de R$ 800 mensais. Em Canoas, o valor dispara para quase R$ 3 mil. Mas o investimento, assegura o secretário de segurança de Canoas, Alberto Kopittke, se reverte em segurança nas ruas.
– Quando se tem de negociar uma cama, começa a perda de controle do presídio. Não adianta somente prender, mas prender bem, evitar contato com o mundo externo e a entrada de celulares e drogas. Se tivermos um sistema prisional novo bem feito, o investimento ajuda realmente a reduzir a violência.
*ZERO HORA