Rafaela Komorowski Dal Molin*
Quanto amor cabe em três minutos e meio? Quanta saudade pode ser expressa em duzentos e dez segundos? Quanto poder carregam palavras de afeto? Como médica na pandemia de covid-19, fui incumbida de uma missão deveras importante: levar até um paciente na UTI a mensagem de sua esposa, cuja visita não era permitida. Bruno tratava um linfoma e aguardava o transplante de medula óssea quando foi invadido pelo novo coronavírus. Já fazia um mês do último encontro presencial com os seus. Ele não podia sair do hospital, e seus familiares não podiam entrar. Mas eu, sim.
A palavra chasque tem origem no império inca e significa mensageiro, pessoa de confiança que leva um recado, a pé ou a cavalo, vencendo todas as dificuldades do percurso. Há registro do uso deste termo já em 1680, em correspondências entre as missões jesuíticas na Colônia do Sacramento. Diz-se que o chasque percorria até 20 quilômetros por dia, desempenhando sua tarefa com maior ou menor rapidez dependendo da urgência que o aviso requeria. Tive meu dia de chasque num domingo de agosto de 2020. Atravessei todos os blocos do hospital, me vesti de toda a proteção necessária contra o inimigo invisível (luvas, máscara, avental, touca, protetor facial) até chegar no último leito do extenso corredor da UTI.
A missiva que eu levava vinha em formato de áudio, transmitida a mim via aplicativo de mensagens, e seria entregue a um homem intubado, respirando com a ajuda de aparelhos e em coma induzido. A primeira tentativa foi frustrada, pois era momento do banho e havia mais pessoas no quarto do que a privacidade que essa entrega exigia.
Em exatos três minutos e meio, Beth foi acomodando palavras ao amor de sua vida e companheiro de travessia, falando-lhe sobre a vontade de estar junto.
Voltei no dia seguinte, desta vez com Bruno sozinho no leito. Os sinais vitais mostrados na tela colorida do monitor ao lado da cama contrastavam com a brancura estéril e melancólica do ambiente. Em meio a alarmes e bipes, posicionei meu telefone muito próximo do ouvido de Bruno e abri a mensagem. A voz doce de sua esposa rompeu o gelo do quarto.
Em exatos três minutos e meio, Beth foi acomodando palavras ao amor de sua vida e companheiro de travessia, falando-lhe sobre a vontade de estar junto. Discorreu sobre o amor e sobre o amar, este sentimento gigante que havia aprendido com ele. Disse-lhe que eram muitas as pessoas a acompanhá-lo, enviando desejos de cura, e que o aguardavam para enchê-lo de carinho e mimos no seu retorno. Traduziu que Bruno era o seu lugar seguro no mundo e, sendo o amor uma morada, era para onde se deveria voltar. Relembrou sua última noite juntos, quando teve seu coração aliviado pela presença do marido, mesmo ouvindo-o dizer que precisava ir ao hospital para se recuperar. Finalizou contando como tinha sorte por poder escrever sua vida junto da dele, e que seguia lhe esperando.
Sob um respeitoso sigilo, ouvi junto de Bruno a mensagem pela primeira vez. Confesso que, periodicamente, espiava o monitor à procura de um aumento nos níveis de pressão arterial ou da frequência cardíaca que pudessem sinalizar algum entendimento, a despeito das medicações sedativas. Independentemente de como o destinatário recebeu e de como a interpretou, mais importante foi a remetente saber que a mensagem foi entregue. Senti-me honrada pela atribuição.
Em uma de suas canções, Caetano poetisa que o tempo é compositor de destinos, tambor de todos os ritmos, e que tudo tem seu tempo propício. O tempo de Bruno findou-se, poucos dias após ter recebido a última mensagem de Beth, levada por mim. Já toda a experiência de tempo verdadeiramente representada em três minutos e meio não pode precisamente ser medida – mas permite-se, para sempre e generosamente, ser amada.
*Médica hematologista do Hospital Moinhos de Vento