Na data em que seu caçula, Nickollas, completaria a maioridade, Lilian Gomes, uma assistente social de Esteio, deu início a uma iniciativa que entende ser sua missão de vida. Decidida a incentivar a doação de sangue, lançou, pelo Facebook, a ONG Amigos do Nick. Naquele 23 de outubro de 2013, o rapaz, morto por uma leucemia dois meses antes, poderia se tornar um doador emancipado, sem a necessidade de ser autorizado pelos pais.
Desde então, Lilian dá contornos de luta ao seu próprio luto, peregrinando por escolas, empresas e hospitais para conscientizar a comunidade sobre a importância do ato. Ela própria, em agradecimento às dezenas de pessoas que doaram a Nickollas, tornou-se uma voluntária contumaz – a cada três meses, segundo permitem as regras de saúde, oferece uma veia a um banco de sangue.
— Toda doação é voluntária. Eu não posso obrigar ninguém, apenas conscientizar. E, com essa sementinha que eu planto, pela história do Nickollas, consigo mobilizar as pessoas. É uma maneira de manter viva a memória do meu filho — conta.
Parceira de famílias que têm de recrutar doadores para seus parentes doentes, a Amigos do Nick está entre as centenas de entidades que, neste mês, empenham-se em promover o Junho Vermelho. Instituída no Brasil há três anos, a campanha busca propagar a mensagem de que um gesto simples, rápido e praticamente indolor pode salvar vidas.
O Junho Vermelho, que, em 2017, tornou-se uma lei estadual em São Paulo e passou a ser promovido em todo o país, não foi escolhido ao acaso. É que, no dia 14 deste mês, celebra-se o Dia Mundial do Doador de Sangue, data estabelecida, em 2014, pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, o Dia Nacional do Doador de Sangue é comemorado em 25 de novembro.
Apenas 1,6% da população tem o hábito de doar
Segundo dados do Ministério da Saúde, em torno de 3,3 milhões de brasileiros são doadores de sangue, percentual que representa 1,6% da população do país. O índice está dentro do recomendado pela OMS, de que ao menos 1% dos habitantes pratique o ato. No entanto, para que mantenha um estoque seguro, o ideal, de acordo com a organização, é de 3% a 5%.
Em tempos de pandemia de coronavírus, a campanha mostrou-se ainda mais urgente. Hemocentros e bancos de sangue de todo o país encaram retração na quantidade de bolsas coletadas, causada pelo receio de contágio e pelos constantes alertas para que as pessoas permanecessem em suas casas. Lilian, habituada a lotar ônibus de voluntários, está tendo de recorrer a pedidos individuais.
— Tenho dito: “Se for para fazer o bem, saia de casa, sim” — relata a assistente social.
O Hemocentro do Estado, por exemplo, teve seu estoque próximo a quantidades preocupantes. Em março, no início das recomendações pelo distanciamento social, a queda no número de doadores foi de 60%. Aos poucos, com campanhas na mídia e apelos à comunidade, o armazenamento tem sido normalizado.
— Esse apelo, às vezes, acaba se perdendo. Temos de retomá-lo a todo o momento para introduzir, na consciência das pessoas, que a doação precisa ser sistemática e contínua. Cada componente do sangue tem uma validade, e os pacientes seguem necessitando dele, em casos de acidentes e até mesmo de doenças crônicas — diz a coordenadora do setor de captação de doadores, Gesiane Almansa.
Para estimular voluntários e proporcionar segurança em tempos de coronavírus, o Hemocentro e os bancos de sangue de hospitais elaboraram regras. Passaram a preconizar agendamentos, reduzir o número de cadeiras nas salas de espera, distanciar as macas de coleta e solicitar o uso obrigatório de máscaras.
— Só posso compreender a queda nos estoques pela sensação das pessoas de que doar é arriscado. Mas, quem está saindo de casa para outras atividades, não precisa ter medo de ir ao hospital a cada 60 ou 90 dias. Por todos os cuidados que estão sendo tomados, é um risco menor do que ir ao supermercado toda a semana, por exemplo — assegura Marco Antônio Winckler, coordenador dos serviços de hemoterapia dos hospitais São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Conceição.
Pelos cálculos do médico, no Conceição, a média mensal de 1,4 mil bolsas de sangue registrada em 2019 caiu para pouco mais de mil neste ano. Já no São Lucas da PUCRS, o estoque permaneceu estável, segundo o hematologista, devido à chamada doação de reposição. Isso acontece quando familiares e amigos são chamados à “restituição” após um procedimento cirúrgico de um paciente.
— E se não viesse ninguém doar, além da pandemia, quantos mais morreriam? Todo mundo está buscando as melhores alternativas. Ninguém pegará covid-19 em hospitais que, muitas vezes, são locais mais seguros do que muitos outros. Podem vir sem medo — afirma Scheila Roberta de Souza, enfermeira do banco de sangue da Santa Casa de Misericórdia.
"É uma questão mais cultural do que de medo"
Seguindo um modelo distinto de outros Estados, o Rio Grande do Sul tem uma rede bastante capilarizada de captação de sangue. O Hemocentro, situado no bairro Partenon, em Porto Alegre, distribui componentes para 42 hospitais da Região Metropolitana, Vale do Sinos e Litoral.
Mas também há outros hemocentros – que são locais exclusivos para coleta, processamento e distribuição de sangue – nas cidades de Alegrete, Caxias do Sul, Cruz Alta, Passo Fundo, Pelotas, Santa Maria e Santa Rosa. Os maiores hospitais do Estado ainda têm seus próprios bancos de sangue, onde também é possível doar.
Para quem lida diariamente com uma equação que envolve os estoques de refrigeradores e a urgência da vida, as agruras não estão limitadas ao período pandêmico. O chefe do banco de sangue do Hospital de Clínicas, Leo Sekine, diz que, na população, carece a consciência de incorporar o ato como um costume:
— Entendo ser uma questão muito mais cultural do que de medo. Boa parte dos nossos doadores são de reposição, que foram convocados por conta de um familiar ou amigo que necessitou de transfusão. Mas eles não criam esse hábito. As pessoas são menos proativas e mais reativas, indo ao banco de sangue apenas quando alguém diz para irem.
Todo o processo dura, em média, 40 minutos
A doação requer o cumprimento de requisitos (clique aqui). O rápido processo, em um hemocentro ou hospital, começa por uma pré-triagem, medindo peso, altura, pressão, frequência cardíaca e temperatura do voluntário.
Em seguida, uma picada no dedo atesta a possibilidade de anemia. A partir daí, o doador segue para outra avaliação, sendo questionado sobre suas condições clínicas, hábitos de vida e uso de medicamentos. Se tudo correr bem, é encaminhado para a coleta, na qual são retirados 450 ml de sangue – todo o processo dura, em média, 40 minutos.
Os componentes do sangue são divididos em quatro: hemácias, plaquetas, plasma e crio. Cada um tem um uso específico e um prazo de validade diferente. Os mais requisitados são as hemácias, a “parte vermelha”, que podem permanecer armazenadas durante 35 dias, muito úteis em casos de acidentes. Já as plaquetas, utilizadas em pacientes de quimioterapia, por durarem só cinco dias, costumam ser mais urgentes nos estoques.
Embora a demanda também tenha diminuído nos últimos meses, por conta, entre outros fatores, do adiamento de cirurgias eletivas e de transplantes, hematologistas têm se mantido em alerta pelo aumento no número de casos de coronavírus no Estado. Pacientes graves de covid-19, especialmente aqueles que necessitam de respiração fora do próprio corpo, requerem transfusões constantes.