José Martins Filho, é professor e ex-reitor da Unicamp, presidente da Academia Brasileira de Pediatria e autor de livros como Quem Cuidará das Crianças? e A Criança Terceirizada. Para o especialista, o número de pais que estão delegando às babás a função de levar as crianças ao médico aumentou nas últimas décadas, principalmente devido à entrada da mulher no mercado de trabalho.
Em entrevista à Zero Hora, o especialista fala sobre a revolução social que atingiu a família e que viu passar pelo seu consultório nos quase 50 anos de carreira que acumula. José Martins Filho ainda comenta os impactos que o distanciamento entre pais e filhos pode gerar no desenvolvimento da criança. Confira:
Nestes quase 50 anos de experiência como pediatra, o senhor viu passar uma revolução social pelo seu consultório.
Houve uma mudança grande na forma de a família se organizar. As mulheres entraram no mercado de trabalho, começaram a dividir com o pai a responsabilidade do financiamento da família, e isso foi um fator seríssimo nessa relação da família com as crianças, principalmente da mãe. O papel da mulher na sociedade mudou muito rapidamente, e ela paga um preço alto porque, além de profissional, tem de ser mãe. Ninguém consegue substituir uma mãe. No meu consultório, sempre vejo elas com babás e, às vezes, só babás com as crianças. E sempre digo para as mães: se você tem condições de ter uma babá, precisa entender que ela tem de ajudar, e não substituir. Antes, no consultório, falava-se mais de vacina, aleitamento, nutrição, higiene. Agora, a gente percebe que estão aparecendo informações sobre vínculo, afeto e presença. São assuntos de maior preocupação atualmente.
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Em suas publicações, o senhor fala de um "abandono silencioso". Ele pode ocorrer sem os pais se darem conta?
Pode ocorrer e pode chegar a casos de depressão infantil, quando as crianças começam a chorar demais, não comem bem, solicitam a mãe frequentemente. Nas cidades grandes, os pais trabalham, voltam à noite, o transporte é difícil, tem as distâncias. Em cidades menores, talvez isso não seja tão intenso. A mãe pode almoçar em casa, por exemplo. Eu sempre recomendo que se mantenha contato com o bebê, pode até ser por telefone ou recursos audiovisuais. No caso de crianças maiores, pode ser por Skype, para que se possa conversar com o filho. É muito importante que se tenha consciência de que a relação com a mãe é fundamental.
Lembra de alguém que tenha relatado a ausência dos pais?
Teve uma criança que percebi que estava muito deprimida, ficava doente com frequência e, às vezes, vinha com a babá para o consultório. Um dia perguntei para a babá como era a situação. E ela me disse que era obrigada a sair às 18h do trabalho, horário em que a mãe não havia retornado. Como a família morava em um condomínio, a babá deixava a criança com os vizinhos. A menina, de quatro anos, ficava sentadinha na porta, esperando a mãe. Receitei um cachorro, para a menina ter pelo menos uma companhia. Graças a Deus isso é raro. Mas acontece.
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Como se dá o equilíbrio entre quantidade e qualidade no convívio entre pais e filhos?
Muitas vezes, quando falamos sobre isso, os pais dizem que não interessa a quantidade, e sim a qualidade do convívio. Aí eu questiono: mas o que você chama de qualidade? Eles respondem que é dar um beijo e um abraço ao chegar em casa e dedicar parte do tempo livre aos filhos. É claro que qualidade é bom, precisa ter, mas não é só isso. A criança precisa de presença. Uma criança pequena que fica mais de 24 horas longe da mãe, por exemplo, não entende o motivo. Ela pode achar que a mãe morreu e começar a se defender disso. Quando a mãe volta, ela se assusta, porque o bebê demora para se envolver com ela de novo.
Existe uma receita para a relação de uma mãe com o filho?
As crianças que têm falta da presença materna - e também paterna, mas no primeiro ano de vida a mãe faz muito mais falta -, têm muitas vezes problemas de desenvolvimento. Os primeiros seis meses são fundamentais nessa relação. É preciso que a mãe esteja presente, acariciando, amamentando e dormindo perto do filho. Depois, os bebês começam a se dar conta de que são outras pessoas, não são um prolongamento da mãe. É um momento em que os psicólogos chamam de "angústia do oitavo mês", quando o bebê tem percepção nítida de que é outra pessoa e sente muito a falta da mãe. Eu sempre falo: o verbo desenvolver tem um prefixo negativo, o "des", no início que significa sair do envolvimento. O bebê que se desenvolve está começando a engatinhar, está ficando em pé, começa a andar com um ano, vai se tornando independente aos poucos. Com dois anos, ele já tem uma visão muito maior. Então, pelo menos até este momento, seria essencial a presença constante da mãe.