
Uma nova modalidade de plano de saúde pode chegar aos brasileiros em breve. Está em pauta na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) uma proposta para testar durante dois anos um produto com cobertura para consultas eletivas e exames — ou seja, ambulatorial.
De acordo com a ANS, o objetivo é ampliar o acesso dos brasileiros aos planos de saúde, aumentando a oferta de produtos. O novo plano seria mais simples e mais barato, sem acesso a pronto-socorro, internação e terapias. Especialistas em direito do consumidor, entretanto, acompanham a discussão com cautela e preocupação.
Após o período experimental (chamado tecnicamente de sandbox regulatório), a ANS realizaria uma avaliação para decidir se o modelo pode continuar ou seria descontinuado. Uma consulta pública fica aberta até o dia 4 de abril para recebimento de contribuições da população sobre a proposta do novo plano.
A agência argumenta que a atenção primária tem capacidade de resolver de 80% a 90% das necessidades de saúde de uma pessoa ao longo da vida, conforme dados do Ministério da Saúde e da Organização Pan-Americana de Saúde. O "experimento" seria mais uma opção de assistência à saúde — hoje, apenas 25% dos brasileiros têm planos de saúde, o que gera sobrecarga no Sistema Único de Saúde (SUS), conforme a ANS.
A prevalência é de planos coletivos. Há uma demanda reprimida por planos de saúde pelas pessoas físicas devido a fatores como baixa oferta de planos individuais e familiares, diferenças de regras entre planos individuais e coletivos, e a existência de regras restritivas para ingresso em planos coletivos.

Custo mensal estimado em R$ 100
O novo produto seria voltado a esse público, com foco na atenção primária e secundária. O órgão regulador estima que cerca de 10 milhões de brasileiros seriam inseridos no setor de saúde suplementar, contribuindo para reduzir a fila de exames do SUS e acelerar diagnósticos.
O economista da saúde e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Giácomo Balbinotto Neto acrescenta que a prevenção e o diagnóstico precoce também contribuem para reduzir custos futuros — a chamada economia da prevenção — e a perda de bem-estar.
A ANS informa, em nota, que "a ideia é que o valor desse novo produto seja em torno de R$ 100 ou menos, mas não é possível confirmar esse preço neste momento, até mesmo porque a ideia é que esse mercado se autorregule" (leia a nota na íntegra ao final do texto).
Embora o novo plano seja voltado a pessoas físicas, a ANS está propondo um plano coletivo por adesão, explica a presidente da Comissão Especial de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), Mariana Diefenthälfer.
Ela ressalta que há diferenças de regulação entre os planos individuais e coletivos: o individual não pode ser reajustado deliberadamente, tampouco pode o consumidor ser descredenciado sem justificativa — o que não se aplica ao coletivo.
Pontos positivos
O pesquisador do Programa de Saúde do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) Yuri Hidd explica que há uma cobertura mínima para todos os produtos estipulada pela Lei de Planos de Saúde, que exige o oferecimento de tratamentos, atendimentos de emergência e de urgência. O produto proposto é novo. O que há de mais parecido no mercado atual são cartões que oferecem descontos em consultas e exames, mas não são regulados.
Para Balbinotto Neto, da UFRGS, a medida passaria a regular essa brecha e ajudaria a resolver o problema de um "limbo" de pessoas sem condições de acesso a planos de saúde, mas que não querem depender exclusivamente do SUS.
Entre os pontos positivos, o economista destaca, assim como a ANS, a maior acessibilidade a uma parcela da população, bem como a redução da demanda e do tempo de espera no SUS. Além disso, cita a criação de novas empresas, a concorrência entre operadoras, que resulta em melhor prestação de serviço, e os benefícios a municípios pequenos.
— Acho que é bem-vindo. Aumenta possibilidades de ofertas para os consumidores. E vai atender uma demanda. É uma alternativa econômica viável para aumentar o acesso à saúde suplementar. Tem desafios regulatórios que vão surgir naturalmente — opina Balbinotto Neto.
Mariana, da OAB-RS, aponta que atualmente as pessoas enfrentam dificuldade em manter planos de maior cobertura devido aos altos custos. Além disso, muitas não têm condições financeiras de arcar com os planos e dependem do SUS, o que sobrecarrega o sistema.
— O que há de vantagem é que muitos consumidores hoje vão poder ter acesso a consulta e exame. E isso vai suprir muita demanda de saúde — pondera.
Pontos negativos
Já Hidd, do Idec, entende que a iniciativa traz "muitos riscos" ao consumidor:
— Pode achar que está adquirindo um plano de saúde, mas nos momentos em que mais precisa, quando tem uma urgência ou precisa de um tratamento, não vai ter acesso a serviços que a lei estabeleceu como mínimos justamente por serem essenciais. Vemos um perigo muito grande de o consumidor acabar se sentindo enganado.
A cobertura limitada é, de fato, um dos pontos negativos, conforme Balbinotto Neto, da UFRGS. Entretanto, o economista destaca que se trata de uma opção do cliente. Segundo ele, o plano garante maior liberdade e pode atender bem alguns públicos — especialmente aqueles que querem consultas, mas contam com o SUS para atendimento hospitalar.
Acho que (o novo plano de saúde) é bem-vindo. Aumenta possibilidades de ofertas para os consumidores. (...) Tem desafios regulatórios que vão surgir naturalmente
GIÁCOMO BALBINOTTO NETO
Economista da saúde e professor da UFRGS
(O cliente) pode achar que está adquirindo um plano de saúde, mas nos momentos em que mais precisa (...) não vai ter acesso a serviços que a lei estabeleceu como mínimos justamente por serem essenciais
YURI HIDD
Pesquisador do Programa de Saúde do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec)
O Idec entende que as operadoras poderão oferecer produtos mais baratos, mas vê perigo de downgrade, ou seja, de o consumidor trocar um plano de maior cobertura por um mais barato (principalmente para as operadoras) com menor cobertura.
Hidd projeta que a situação levará os pacientes a recorrerem ao SUS no momento em que precisarem de um tratamento. O cenário acarretará impactos no sistema público de saúde, que terá de cobrir justamente o que é mais custoso para as operadoras.
Do mesmo modo, Mariana, da OAB/RS, avalia que a experiência traz certa preocupação do ponto de vista do consumidor. A crítica é de que a medida vai onerar o SUS, que já enfrenta dificuldades de atendimento. A maior discussão diz respeito ao fato de as operadoras encaminharem cuidados com os pacientes, mas não cobrirem, por exemplo, o tratamento — o que seria um retrocesso.
Fila do SUS seria furada?
Além disso, não fica claro como seria organizada a fila para uma pessoa que foi diagnosticada de modo mais rápido pela saúde suplementar, mas tem de recorrer ao tratamento via SUS. Hidd, do Idec, observa:
— Se você obtém um diagnóstico pelo sistema privado, não pode ir direto para a fila do SUS para conseguir tratamento. Se tivesse compartilhamento de dados, imaginamos que talvez acontecesse um efeito de furar a fila.
Mariana, da OAB/RS, ressalta que seria necessário realizar todas as etapas de consultas e exames novamente pelo SUS, que possui um regime próprio, ou construir um novo caminho para o fluxo do paciente.
Risco de judicialização
Os especialistas veem, ainda, a possibilidade de aumento da judicialização em relação às operadoras — que já é grande, motivada por negativas de coberturas devidas, segundo Hidd, do Idec. A falta de compreensão dos consumidores de que a cobertura é limitada deverá ser outro motivo, acrescenta Mariana. A informação terá de ficar clara para o consumidor.
— Há principalmente um perigo de retrocesso em relação ao que era antes da Lei de Planos de Saúde, que ofereceu uma segurança mínima aos consumidores — sustenta Hidd. — O cenário de desregulamentação fazia com que as pessoas tivessem pouco acesso ou que houvesse práticas muito abusivas no mercado. O que estamos vendo é uma ofensiva justamente para desregulamentar esse mercado e tirar garantias mínimas.
Além disso, é preciso saber se todas as especialidades serão atendidas. A ANS afirma que haverá cobertura total para consultas eletivas em todas as especialidades. Os médicos serão aqueles conveniados ao plano, podendo haver baixa adesão ou opções limitadas, aponta Mariana, da OAB/RS.
"Caminho mais longo"
Para o Idec, a ANS está oferecendo um produto que não é um plano de saúde e é menos regulamentado. Haveria outros caminhos para resolver os problemas dos planos individuais. Além disso, segundo o Instituto, a ANS deve tomar medidas para garantir reajustes menos abusivos no setor.
Para Mariana, da OAB/RS, trata-se de uma experiência que terá de ser navegada e avaliada — e dependerá também do comportamento do paciente. Ela não descarta, entretanto, que haja outros caminhos possíveis para diminuir os custos sem diminuir a cobertura:
— É uma possibilidade pensar em baratear, sim, principalmente os planos individuais.
O que diz a ANS
"A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informa que a proposta colocada em debate pela ANS trata da criação de um produto voltado para um público bem específico e amplo. Um público que não tem plano de saúde tradicional, que usa serviços como clínicas populares, cartões de desconto e cartões pré-pagos e que assume o risco financeiro quando usam esses serviços. O cidadão que usa esses serviços sabe que o que está contratando tem um limite atrelado ao valor que pode pagar. Estima-se que há pelo menos 50 milhões de pessoas nessa situação.
Esse mesmo cidadão pode ter como opção um produto com direito a consultas médicas e a uma ampla lista de exames — muitos de alta complexidade —, como tomografias e ressonância magnética, por um baixo custo mensal e sem limite de quantidade. Pode ter como alternativa um produto regulado, monitorado e fiscalizado por uma agência reguladora, o que proporciona segurança ao consumidor. Nesse produto, o risco assistencial é de responsabilidade da operadora: ela tem obrigação de prestar a assistência contratada e poderá ser punida pela ANS se não cumprir o contratado. Isso não acontece com os outros tipos de produtos e serviços já mencionados e existentes, que não permitem uso ilimitado de serviços.
Estamos falando, portanto, de dar a essas pessoas, que hoje já utilizam o SUS para atenção primária e secundária, o direito de ter um produto que possibilita o acompanhamento clínico com especialistas e ter diagnósticos precoces na saúde suplementar. De acordo com órgãos como a OMS e a Opas, até 80% dos problemas de saúde podem ser resolvidos na atenção primária e secundária.
Dessa forma, a Agência busca ter, na saúde suplementar, um produto seguro, que será devidamente monitorado e fiscalizado por uma entidade reguladora, com garantia do que foi contratado. Portanto, não há que se falar em afetar o consumidor, pelo contrário.
Também vale destacar que nada muda para quem já tem um plano de saúde. Inclusive, esse novo produto não permite o exercício da portabilidade de carências para outro tipo de plano. Ou seja, alguém que está nesse plano de consultas estritamente eletivas e exames não pode ir para um plano já existente e nem quem está em um plano já existente pode mudar para esse produto dentro do sandbox regulatório.
Além disso, a realização do sandbox regulatório para testar o funcionamento desse produto permite justamente avaliar suas funcionalidades, acertos e problemas, para que se possa decidir, ao final do experimento, baseando-se em dados e informações os ajustes necessários ou descontinuidade do mesmo. Vale destacar que nenhuma operadora será obrigada a comercializar este produto e nem mesmo nenhum cidadão será obrigado a adquiri-lo e mantê-lo.
Importante mencionar, ainda, a ampla participação social na avaliação dessa proposta, através da realização da Audiência Pública 52 na terça-feira, 25/2, quando ao longo de um dia inteiro a sociedade pode prestar suas contribuições sobre o tema. Além disso, a ANS mantém uma consulta pública sobre a iniciativa, que está aberta até 4/4, para que todos os interessados enviem suas colaborações, críticas e sugestões fazendo com que, de forma conjunta, seja possível se chegar a uma proposta que atenda aos interesses da sociedade brasileira.
Por fim, sobre a questão dos valores, vale reforçar que ainda serão realizados os estudos para a precificação desse novo produto. Como referência, a Agência parte do atual preço dos planos exclusivamente ambulatoriais, que tecnicamente seriam os de valor mais baixo nesse mercado, em torno de R$ 360, em uma média de preços do primeiro semestre do ano passado. Assim, a ideia é de que o valor desse novo produto seja em torno de R$ 100 ou menos, mas não é possível confirmar esse preço neste momento, até mesmo porque a ideia é que esse mercado se autorregule."
O que diz a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde)
“A FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), representante das maiores operadoras de planos de saúde do país, avalia que a medida abre a possibilidade de ser oferecida mais uma alternativa de assistência aos beneficiários, preservando todas as demais opções de planos hoje disponíveis. Considera ainda que coberturas mais focadas, como a proposta pela ANS, podem contribuir para tornar os planos de saúde mais acessíveis e ampliar o acesso dos brasileiros à saúde de qualidade que as operadoras propiciam. Também irão colaborar para maior promoção de saúde e prevenção de doenças, com efeitos benéficos sobre todo o sistema de saúde, ao aliviar o SUS das filas de espera de consultas eletivas e exames.”