Uma briga na área da saúde, iniciada na Justiça em 2016, foi reacesa neste mês em todo o Brasil após o Conselho Federal de Odontologia (CFO) criar uma resolução, em janeiro, autorizando cirurgiões-dentistas a aplicarem toxina botulínica – popularmente conhecida como botox – em pacientes para fins estéticos. A decisão revoltou entidades médicas, que entraram com ação civil pública para impedir o aumento do escopo na atuação dos colegas. Para o Conselho Federal de Medicina (CFM) e outras entidades, procedimentos estéticos invasivos devem ser aplicados apenas por quem estudou Medicina. A classe odontológica diz que a reclamação é movida por reserva de mercado.
Desde 2016, as duas profissões brigam na Justiça – dentistas lutam para terem liberdade em realizar procedimentos estéticos, e médicos tentam impedir. O último capítulo foi em 29 de janeiro, quando o conselho de odontologia publicou a Resolução 198/2019. O documento reconhece a aplicação de botox e de preenchimentos para fins estéticos no rosto e no pescoço (a chamada "harmonização orofacial") como especialidade de cirurgiões-dentistas. É criada também especialização na área, com carga-horária mínima de 500 horas.
O documento busca regular prática feita há anos em consultórios de cirurgiões-dentistas, diz o presidente do CFO, Juliano do Vale. Até então, dentistas podiam aplicar botox apenas para corrigir problemas de saúde – como, por exemplo, paciente com dores nos músculos das mandíbulas ou que sofrem de sorriso gengival, quando o lábio sobe muito ao sorrir. Com a resolução, os profissionais também podem atuar em preenchimentos, bichectomia (afinação do rosto a partir da redução das bochechas) e laserterapia.
— Isso é reflexo de uma atuação mundial, já permitida em outros países. No Brasil, era praticado, mas com relação apenas a procedimentos funcionais e estético-funcionais — diz o presidente da entidade que representa dentistas. — Vejo isso (a ação de entidades médicas) como uma tentativa de reserva de mercado, tendo em vista que temos profissionais que atendem em hospitais e nunca foram questionados sobre suas competências. Complicações em um tratamento devem ser avaliadas em conjunto — acrescenta.
A ação do Conselho Federal de Medicina, movida também pela Associação Médica Brasileira (AMB), pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e pela Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), defende que a formação do dentista em universidades ensina apenas a tratar doenças, e não questões estéticas. Caberia apenas a médico fazer uso da técnica.
— Aplicar botox para fins estéticos não está na formação do odontólogo. Se eles quiserem fazer isso, então precisam alterar a lei de formação da profissão. A única estética deles é o uso do aparelho ortodôntico. O médico cumpre 11 anos de formação em Medicina e em cirurgia plástica para fazer procedimentos estéticos — afirma o coordenador da câmara técnica de cirurgia plástica e queimados do CFM, Pedro Eduardo Nader. — Injeta-se botox, o paciente fica com cegueira, vai para um hospital e quem trata? O médico. Quem está apto a fazer um procedimento precisa também tratar a complicação — sustenta.
O Ministério da Saúde informou que cabe às entidades de classe definir o escopo de suas profissões. Advogado especialista em direito da saúde, Flávio Schumacher explica que os conselhos federais estão na mesma posição hierárquica – médicos, portanto, não mandam em dentistas e vice-versa.
— Às vezes, há pontos em comum em mais de uma área. É esse o caso, uma vez que as duas profissões têm a capacidade técnica para o procedimento. O caso provavelmente será decidido no Supremo — avalia.
ENTENDA
O que médicos podem fazer hoje
Segundo a lei do ato médico (12.842/2013), somente médicos podem realizar procedimentos invasivos, sejam diagnósticos, terapêuticos ou estéticos.
O que dentistas podem fazer hoje
A resolução nº 198/2019 do Conselho Federal de Odontologia (CFO) entra em choque com a classe médica ao permitir o uso de botox e de preenchedores faciais por cirurgiões-dentistas para questões estéticas, desde que o profissional não atue em uma área do corpo que não seja de sua competência. Antes, já podiam fazê-lo para resolver problemas de saúde.
O argumento dos dentistas
Cirurgiões-dentistas estão autorizados a manipular botox e, em consultório, resolvem problemas de saúde mais complexos do que procedimentos estéticos. Além disso, dizem ser capacitados porque estudam especificamente a biologia do rosto e da face durante todos os anos da graduação. Médicos estariam incomodados por reserva de mercado.
O argumento dos médicos
Apenas médicos estão capacitados para fazer procedimentos invasivos e resolver possíveis complicações, segundo a lei do ato médico. A lei que define a atuação de dentistas (5081/66) não permitiria aos profissionais fazer uso de procedimentos invasivos, salvo para autópsia. Dentistas não seriam treinados para aplicar botox de fins estéticos na universidade.