— Eu sou forte!
A frase, repetida diariamente por uma paciente gaúcha que sobreviveu a um infarto fulminante com complicações severas, conforta seus filhos e o marido na unidade pós-operatória que, na última semana, virou uma segunda casa para a família. Reunidos e otimistas, eles aguardam a doação de um coração para que a mulher de 63 anos* consiga continuar vivendo. Médicos acreditam que, se o transplante não for feito em, no máximo, três semanas, ela morre.
Na unidade do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul voltada a pacientes que se recuperam de cirurgia cardíaca, os dias têm sido de expectativa contida para a notícia que pode salvar sua vida. Contida porque o coração da aposentada está fraco: ela precisa tentar não se movimentar de maneira brusca, deve evitar emoções fortes, cuidar para que o órgão vital que já mal consegue funcionar sozinho seja exigido apenas dentro de sua capacidade.
Vítima de um infarto há duas semanas, ela sobrevive graças a um aparelho que ventila oxigênio para seu pulmões e para o coração debilitado. A máquina, apesar de ser considerada o que há de mais novo no tratamento para casos como esse, não conseguiria manter seu organismo funcionando por mais de 20, 30 dias. Já se passaram 10.
Entre sessões leves de fisioterapia, conversas com médicos e visitas de apoio dos familiares, ela corre contra o tempo para simplesmente viver. Dada a gravidade do infarto, repetidos tratamentos e intervenções cirúrgicas não surtiram o efeito desejado. Sua única esperança reside na doação de um coração — que precisa ser compatível e deve chegar logo, já que o estado de saúde dela é preocupante e o órgão, quando doado, tem um tempo máximo de preservação que varia entre quatro e seis horas.
— Tentamos tirar a máquina e ver como ela reagia, mas o coração não conseguiu recuperar sua função cardíaca. Ela está bem, com a ajuda da ECMO (oxigenação por membrana extra-corpórea, na sigla em inglês), mas essa sobrevida tem um limite — explica o cirurgião cardíaco Lucas Krieger Martins.
— Ela é quem mais sofre, mas está confiante. É ela quem nos dá forças para acreditar que tudo vai dar certo — diz uma das filhas da paciente.
O infarto, como costuma acontecer, veio de repente: de manhã, ela fazia a limpeza da casa no litoral do Estado onde mora há 22 anos. Foi quando sentiu uma pontada no peito, sintoma a que deu pouca atenção. De tarde, em uma conversa por telefone, a filha mais nova notou que a voz da mãe estava fraca. Dadas as orientações para que se cuidasse, ambas se despediram. Mas horas mais tarde ela já não atendia. A preocupação aumentou, e os filhos e o marido resolveram levá-la ao hospital.
O atendimento adequado demorou. Só dois dias depois do primeiro sintoma de dor a paciente saiu do hospital litorâneo e foi encaminhada ao Instituto de Cardiologia. Recebida na emergência, ela passou por um cateterismo cardíaco para identificar o problema e, depois, por uma angioplastia, para combater a obstrução de artérias. As intervenções surtiram pouco efeito. A paciente sofreu ainda uma comunicação interventricular (CIV), complicação de altíssima letalidade. Sobrevive, desde então, graças ao aparelho que ao longo da semana passou a assumir boa parte das funções do coração.
— A situação é extremamente complicada. O índice de letalidade em um caso como esse chega a 90%. Ela precisa de um coração novo com urgência — detalha Krieger.
No Brasil, país com o maior sistema público de transplantes do mundo, cada órgão tem uma fila de espera específica. A lista não funciona por ordem de chegada, em que o primeiro a se inscrever receberá o órgão antes do segundo e assim consecutivamente. Em vez disso, os critérios obedecem a condições médicas. São três fatores determinantes: compatibilidade dos grupos sanguíneos, tempo de espera e gravidade da doença.
Em tratamento de um caso considerado de muita gravidade e devido ao elevado risco de morte, a paciente do Instituto de Cardiologia tem prioridade nessa fila — o que aumenta suas esperanças de receber um coração compatível a tempo. Ela passou a integrar a lista de espera também para pacientes de Santa Catarina e do Paraná, além do Rio Grande do Sul. Estados mais distantes ficaram de fora porque, devido à complexa logística requerida e a vulnerabilidade do órgão, a viagem não pode ser longa.
Tentando se manter alheia a maus prognósticos, a paciente não vê a hora de chegar em casa e rever os quatro netos. As conversas com o marido, os filhos, os médicos e a equipe de enfermeiros são leves, descontraídas, esperançosas. E, ciente da necessidade de um transplante bem-sucedido para continuar viva, ela tem reforçado a todos um desejo que já havia expressado à família:
— Se eu não passar por essa provação, o que tiver de bom em mim vocês podem doar. Mas eu vou sobreviver. Sei que não vou passar por tudo isso para nada.
* Os nomes da paciente e de seus familiares não podem ser divulgados por questões éticas relacionadas à fila de transplante de órgãos.
Quando a doação é possível
Não é qualquer tipo de morte que viabiliza a doação. Para que os órgãos possam ser transplantados, é preciso que sejam retirados enquanto o coração ainda bate artificialmente — o que só é possível em casos de morte encefálica, quando todas as funções do cérebro param de maneira completa e irreversível. Essa é a definição legal de morte. Quando cessam todas as funções neurológicas, o organismo é mantido "funcionando" com a ajuda de aparelhos. Como ainda há uma pulsação e o corpo está quente, há dificuldade de os familiares entenderem que aquela pessoa efetivamente está morta, que se trata de uma situação irreversível. E a negativa familiar diante de situações como essa é a principal causa que impede a doação de órgãos. É por isso que, apesar do grande número geral de mortes, a quantidade de possíveis doadores é baixa.
Quem pode e quem não pode doar
Há critérios de seleção destinados a impedir que órgãos pouco saudáveis sejam utilizados em transplantes. A idade não costuma ser um deles: crianças e idosos podem ser doadores, assim como qualquer pessoa que tenha tido a morte encefálica confirmada. Mas a causa da morte e o tipo sanguíneo do doador, entre outros fatores, ajudam a definir quais partes de um corpo poderão ajudar outras pessoas. No Brasil, só há restrição absoluta à doação de órgãos por parte de pessoas com aids, com doenças infecciosas ativas e com câncer. No entanto, indivíduos com alguma doença transmissível podem doar para pacientes que tenham o mesmo vírus, como no caso das hepatites.
Como ser doador
O ideal é manifestar a vontade de doar e informá-la à família. Não adianta deixar o desejo expresso por escrito nem um registro — mesmo gravado em vídeo ou declarado em uma rede social, por exemplo. A decisão final é dos familiares: são eles que definirão se e quais órgãos e tecidos serão doados.