A prefeitura de Porto Alegre calcula que a menos 1,1 mil famílias ainda têm de ser removidas do Sarandi para que possam ser realizados os trabalhos de recomposição de 11 quilômetros de diques rompidos durante a enchente de maio, que atingiu especialmente o bairro de 51 mil habitantes.
O reassentamento dessa população esbarra na resistência de alguns moradores, que não se sentem plenamente atendidos em suas necessidades pelas condições dos programas de ajuda disponíveis. Pela complexidade das negociações, não há prazo para que ocorra o esvaziamento das áreas e, portanto, também não há estimativa para a finalização da obra. Um desafio semelhante ao da remoção de famílias para a ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho ou ao que envolve, até hoje, a nova ponte do Guaíba.
Ao longo de mais de cinco décadas de ocupação urbana, o Sarandi testemunhou, em desacordo com critérios técnicos, a construção de imóveis sobre os diques ou apoiados nas estruturas que cumprem o papel de muro de proteção do bairro. O resultado são trechos de diques mais delgados e baixos, o que contribuiu para a tragédia de 2024.
O levantamento de imóveis que terão de ser removidos é feito pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab), a partir dos apontamentos do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae). A primeira fase da obra, concluída no início de janeiro, aumentou o nível do dique do Sarandi de 4m para 5,8m — superior à altura máxima atingida pelo Guaíba durante a inundação, que foi de 5,5m. Em uma próxima etapa, o projeto prevê a elevação do dique para 7m.
A remoção das famílias ocorre por etapas. Na fase crítica da enchente, as primeiras 48 famílias foram cadastradas após terem as casas destruídas pela água ou em razão de obras emergenciais para reconstruir as partes rompidas do dique.
Embora afete todo o bairro, a operação se concentra em partes específicas do Sarandi, como as ruas Aderbal Rocha de Fraga, Francisco de Medeiros e a Avenida Dique.
A prefeitura já enviou 555 cadastros de famílias ao programa Compra Assistida, do governo federal, que oferece casas de até R$ 200 mil para moradores atingidos pela enchente. A expectativa é de concluir o cadastramento até o final de janeiro, o que deve somar 1,1 mil famílias.
— Aqueles casos que venham a ser controversos lá na frente, ou seja, de famílias que acreditam que as suas casas teriam um valor maior ou que buscam algum outro tipo de acompanhamento, vamos encaminhar para a Procuradoria-Geral do Município para que se possa, em conjunto com o Departamento Municipal de Habitação, negociar. Vamos buscar um encaminhamento justo a cada um dos processos — garante o diretor-geral do Demhab, André Machado.
Dificuldades burocráticas em áreas rurais
O pedreiro Claudir Pedro Brito Poli, 42 anos, mora há quase 25 anos em uma casa apoiada no dique que margeia o Arroio Sarandi. Afastado do trabalho por questões de saúde e em tratamento contra a depressão, encontrou alívio na criação de galinhas. Ele ainda aguarda o seu nome aparecer na lista de aprovados da Caixa Econômica Federal para o programa Compra Assistida e se diz disposto a mudar de endereço, mas diz ter preferência por um imóvel rural justamante por conta dos animais.
Com os R$ 200 mil (do programa federal) eu teria um local onde eu poderia levar os animais. Mas eles (a Caixa) não aceitam porque na área rural não tem a casa averbada, só escritura do terreno.
CLAUDIR PEDRO BRITO POLI
Morador vive há quase 25 anos em uma casa apoiada no dique que margeia o Arroio Sarandi.
— Como é que vou viver num apartamento se ganho um salário mínimo? Eu teria que pagar condomínio. Só a minha medicação dá em torno de R$ 250 a R$ 300. Em seis meses, eu perco o apartamento e vou para a rua — diz o pedreiro.
O caminho até alcançar a chave de um imóvel via Compra Assistida — o principal programa de concessão de casas a atingidos pela enchente no Rio Grande do Sul — envolve uma série de etapas. No Sarandi, o Demhab prioriza cadastrar as famílias afetadas pelas obras nos diques. Os nomes são, depois, enviados ao governo federal, que por meio da Caixa viabiliza a compra.
Quando o morador opta por um imóvel em condomínios novos oferecidos pela Caixa, o processo é menos demorado por não envolver mais vistorias. Mas nem todos demonstram interesse em recomeçar a vida em apartamentos após décadas residindo em uma casa. A pessoa pode indicar um imóvel usado, mas a espera pela vistoria e outros trâmites burocráticos atrasam o processo e geram queixas.
A Caixa Econômica Federal não detalha, no Compra Assistida, quantos imóveis são casas e quantos são apartamentos. Procurada pela reportagem, afirmou que, em todo o Estado, foram disponibilizadas até o momento "1.306 unidades habitacionais" (leia nota na íntegra ao final).
Além do Compra Assistida, a prefeitura de Porto Alegre também possui um programa próprio a atingidos pela enchente. O Estadia Solidária oferece o pagamento de R$ 1 mil ao longo de 12 meses para que, nesse prazo, as famílias possam fazer a escolha de uma nova residência junto à Caixa. Já o governo estadual criou o A Casa é Sua — Calamidade. Até o momento, foram entregues 322 casas temporárias nos municípios de Arroio do Meio, Encantado, Cruzeiro do Sul, Estrela, Triunfo, Rio Pardo e São Jerônimo. Em Porto Alegre, as primeiras casas temporárias devem ser entregues em março, destinadas a pessoas que seguem em abrigos.
Eu amo esse lugar. Ganhei meus filhos, tenho neto, bisneto, e eles moram tudo na Vila (Brasília). Eu vou fazer 76 anos e não tenho mais como tocar minha vida para frente, trabalhar. Eu preciso achar uma casa para mim aqui no Sarandi.
ISABEL NUNES CAVALHEIRO
Moradora do Sarandi há quase 50 anos
Falta de alternativa a comércios
Se por um lado o Compra Assistida oferece a opção de uma nova moradia, por outro, nenhum projeto prevê o financiamento voltado a imóveis comerciais. Esse é o dilema do empresário Belmiro Gonçalves do Prado, 49 anos, residente da Rua Aderbal Rocha de Fraga. A família construiu, ao longo das décadas, quatro estabelecimentos: uma distribuidora de bebidas e um armazém, que seguem operantes, e uma loja de roupas e uma ferragem, que estão fechadas desde a enchente.
Belmiro reconhece a necessidade da obra do dique e que precisa se mudar. Porém, a falta de perspectiva de reposição de seu negócio o preocupa.
O que eu gostaria é apenas um espaço igual esse que eu tenho para trabalhar, de preferência aqui dentro do Sarandi. Se não der, num bairro aqui próximo para que eu continue fornecendo aos meus clientes do Sarandi e que eu continue trabalhando e ajudando o Sarandi a crescer.
BELMIRO GONÇALVES DO PRADO
Morador que tem um comércio embaixo da casa em que vive
Procuradas, Caixa Econômica Federal e prefeitura de Porto Alegre admitem não possuir programa específico destinado a imóveis comerciais. Já o governo do Estado destacou o programa de empréstimos Pronampe Gaúcho, que permite ao empresário que pagar em dia devolver ao banco menos do que retirou, entre outras iniciativas (leia as íntegras das notas abaixo).
Leia nota da Caixa Econômica Federal
"O Minha Casa, Minha Vida Reconstrução RS é um programa para aquisição de unidades habitacionais, por meio de recurso do FAR (Fundo Arrendamento Residencial), para restabelecer moradia às famílias que tiveram suas casas destruídas ou interditadas de maneira definitiva pelas enchentes que afetaram o Rio Grande do Sul.
Foram disponibilizadas 1.306 unidades habitacionais, entre as indicadas pelos próprios beneficiários para compra pelo FAR como aquelas que serão escolhidas pelos participantes do programa diretamente no portal da CAIXA. Ressaltamos que o programa não é voltado ao atendimento de famílias que tenham perdido imóveis comerciais nas enchentes.
A lista dos beneficiários indicados pelo poder público está disponível no endereço eletrônico www.caixa.gov.br\reconstrucao.
No último dia 15, o Ministério das Cidades publicou a Portaria Conjunta nº 01 de 2025, assinada pelos ministros das Cidades, Hailton Madureira (Substituto), e Fazenda, Fernando Haddad. A portaria visa dar celeridade ao processo, incluindo a atuação dos correspondentes bancários no atendimento das contratações do Minha Casa, Minha Vida Reconstrução.
O banco esclarece que os imóveis cadastrados no programa são passiveis de visualização somente pelo beneficiário pelo portal imoveisavenda.caixa.gov.br para fins de indicação de interesse e não são passiveis de divulgação."
Leia nota do governo do Estado
"Entre as iniciativas do governo do Estado para auxiliar empresários atingidos pelas enchentes está o Pronampe Gaúcho, que destinou R$ 250 milhões em crédito via Banrisul, sendo R$ 100 milhões de subsídio do Estado (40% do crédito tomado). O programa permite ao empresário que pagar em dia devolver ao banco menos do que retirou. Havia possibilidade de contratar crédito de R$ 3 mil para MEIs e de até R$ 150 mil para micro e pequenas empresas e sociedades simples. Os empréstimos têm 12 meses de carência, sem qualquer pagamento, e quatro anos para pagar com parcelas mensais fixas. O programa se encerrou no final do ano.
Já o Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) oferece uma linha emergencial, o Em Frente RS, para financiamentos a empresas atingidas pelas enchentes. Destinado a apoiar a retomada de setores fortemente afetados, o programa contabiliza 800 empreendimentos contemplados pela linha emergencial. A iniciativa atendeu, na primeira fase, permissionários do Mercado Público e da Estação Rodoviária de Porto Alegre, comerciantes que operam na Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa/RS), empresas situadas no Quarto Distrito da capital e o segmento de bares e restaurantes em municípios atingidos pelo evento meteorológico. Desde outubro, o programa está disponível para empresas de todos os segmentos localizadas nos municípios sob calamidade pública, com faturamento de até R$ 16 milhões/ano. O Em Frente RS liberou mais de R$ 254 milhões e tem carência integral de 12 meses e mais quatro anos de prazo para pagamento do valor financiado, com prestações que vão reduzindo a cada mês. Empreendimentos com atuação nas regiões do Vale do Taquari, Serra e metropolitana de Porto Alegre lideram a busca pelo programa.
Tem, ainda, o MEI RS Calamidades, um programa criado pelo governo do Estado para a retomada e o incentivo aos microempreendedores individuais atingidos pelas enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. R$ 96 milhões devem ser investidos, sendo R$ 33 milhões na primeira fase, R$ 30 milhões na segunda fase e R$ 33 milhões na terceira fase."
*Produção: Fernanda Axelrud