Um ano após determinação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de paralisação das obras de asfaltamento da Avenida Padre Tomé, no Centro Histórico, a prefeitura de Porto Alegre ainda não acatou a decisão da autarquia federal de retirar a cobertura asfáltica de cima dos paralelepípedos no entorno da Igreja Nossa Senhora das Dores, que é tombada. E nem pretende fazer isso.
— Não burlamos legislação, não entramos no bem tombado, foi no entorno. Retirar o asfalto não vai voltar ao status original porque já havia problemas de estrutura — afirma o secretário Municipal de Serviços Urbanos, Marcos Felipi Garcia, confirmando a intenção da prefeitura de não retirar o asfalto do trecho.
Neste momento, a autarquia federal aguarda resposta da prefeitura sobre o tema. Em 13 de janeiro de 2022, o prefeito Melo chegou afirmar que "se for determinada a retirada do asfalto, vamos retirar".
— Sobre o asfaltamento no entorno da Igreja das Dores, foi encaminhada para análise da prefeitura a minuta de termo de ajustamento de conduta. Estamos aguardando a manifestação da mesma — explica o superintendente do Iphan-RS, Leonardo Maricato.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), “o termo de ajustamento de conduta é um acordo que o Ministério Público celebra com o violador de determinado direito coletivo. Este instrumento tem a finalidade de impedir a continuidade da situação de ilegalidade, reparar o dano ao direito coletivo e evitar a ação judicial.”
Disponível para consulta pública no site do Iphan por meio do processo 01512.000015/2022-84, o documento mostra diversas movimentações desde que foi gerado em 11 de janeiro de 2022. As duas últimas movimentações constam do dia 8 de dezembro do ano passado. Uma trata exatamente da Minuta de Termo de Ajustamento de Conduta encaminhada pelo Iphan ao prefeito Sebastião Melo, com cópia para o secretário Marcos Felipi Garcia. O teor do conteúdo pode ser consultado, na íntegra, neste link.
Entenda o impasse
O problema começou há um ano, quando a prefeitura decidiu cobrir o calçamento original na região da Igreja das Dores sem consultar a autarquia federal vinculada ao Ministério do Turismo. Ao tomar conhecimento da irregularidade, o Iphan foi ao local fazer uma vistoria fotográfica e determinou a paralisação das obras no entorno de patrimônio histórico, no dia 13 de janeiro de 2022. Também autuou o Município. O Paço Municipal solicitou regularização em 10 de fevereiro. Mas teve o pedido negado.
O motivo para a negativa do Iphan foi que a intervenção não poderia ser considerada “reforma simples” porque se tratava de recobrimento do calçamento original. A alteração foi reprovada por ter “provocado inequívoca interferência negativa à Igreja das Dores, bem como a todo o conjunto de edificações institucionais de caráter monumental que a ladeiam e criam, tendo a Igreja como protagonista, a ambiência do bem tombado.” Desde então, o impasse permanece e o asfalto segue cobrindo a Avenida Padre Tomé.
A portaria 187/2010 do Iphan afirma que vias do perímetro de um bem tombado também devem seguir os padrões de não alteração das características originais, e que qualquer alteração física deve ser previamente consultada junto à autarquia federal.
A advogada Jacqueline Custódio, integrante do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) e coordenadora do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro no RS, ressalta que o asfalto não existia quando a Igreja das Dores foi construída.
— Por isso é tão chocante para nós, que trabalhamos com patrimônio histórico, ver aquele asfalto colocado do nada. Não é como uma estrada que passa muitos carros por minuto. E outra coisa é que a impermeabilidade que o asfalto traz, em termos de sustentabilidade e manutenção, tu perdes isso com esse asfalto — observa.
A especialista no tema cita a questão do entorno do bem.
— Existe uma lei que preserva o entorno. O bem, no caso da igreja tombada, tem que ter um entorno que não atrapalhe a sua volta. A pessoa tem que olhar para o bem e se transportar para o passado — diz.
A prefeitura alega que o objetivo da pavimentação das vias do Centro Histórico ocorreu para dar mais segurança a veículos e pedestres. A distância entre o asfalto e a calçada tombada como patrimônio histórico é de 88 metros.
Entre outras alegações para o asfaltamento estão a mudança da sede da prefeitura para o antigo prédio da Habitasul, localizado na esquina da Rua Siqueira Campos com a General João Manoel. Para a prefeitura, o fluxo de automóveis aumentou significativamente nos quarteirões próximos. A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb) também cita que já havia pedaços de asfalto esburacados na Avenida Padre Tomé, trecho que foi corrigido com as obras de pavimentação.
— A Padre Tomé não é uma via tombada. As vias tombadas são a Andradas e a Sepúlveda. Ela está em um entorno de um bem tombado. E já tem asfalto em outros trechos dela, que liga à Siqueira Campos e à Mauá. Discutimos o entorno do bem tombado — contextualiza o secretário Marcos Felipi Garcia, acrescentando: — A legislação que o Iphan se baseia diz que, para obras que diminuam a visibilidade do bem tombado no seu entorno, ou que tenham publicidade, o Iphan deve ser consultado. As pedras antigas já tinham problemas e buracos naquele trecho que foi asfaltado. Não estavam mais no status original. Não impedimos a visibilidade, nem usamos publicidade. Melhoramos a via e demos segurança para o pedestre.
Apesar da decisão técnica do Iphan suspender a obra, o que também se estendeu na época para a Rua Sete de Setembro, organizações militares sediadas na região enviaram ofícios à prefeitura solicitando que a pavimentação com asfalto continuasse na avenida. Conforme GZH noticiou, as autoridades militares argumentaram, nos documentos datados entre maio e junho, que o asfalto em vias como a Sete de Setembro, General Canabarro e General Portinho trariam mais segurança a pedestres e veículos que transitam pelo local. No entanto, a prefeitura não levou adiante essas sugestões.
A prefeitura já passou por problema semelhante com órgãos vinculados ao patrimônio histórico ao decidir fazer testes de pintura nas paredes do Viaduto Otávio Rocha, em setembro de 2021, sem consultar quem entende do assunto. Na oportunidade, a pintura usada não teve aprovação prévia da Equipe do Patrimônio Histórico Cultural (Epahc), da Secretaria Municipal de Cultura da Capital. Parte da parede da estrutura chegou a ganhar uma tinta de cor cinza, o que gerou diversos protestos. Após um pedido de informações solicitado pelo Ministério Público do RS, a pintura foi suspensa.