Beatriz Gonçalves Pereira, 60 anos, é mãe de santo, negra e moradora da Ilha da Pintada. Quem não a conhece por tais credenciais já pode ter visto seu rosto, a 65 metros de altura, em Porto Alegre: Bia é a mulher grafitada na lateral do prédio que abriga o Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem (Daer) e a Procuradoria-Geral do Estado (PGE), na Avenida Borges de Medeiros, bairro Praia de Belas. A pintura, obra da suíça Mona Caron e do paulistano Mauro Neri, foi planejada e executada entre o fim de 2021 e o início de 2022. Acabou entregue como um presente aos 250 anos da cidade.
— Ainda não caiu a ficha. É um orgulho para mulheres, para nós das ilhas e para todos das periferias — diz sorrindo, em uma nova visita ao local, na manhã desta quinta-feira (24).
Enquanto desenhavam o perfil de Bia, os artistas foram ao bairro Arquipélago, conheceram os espaços mantidos por ela e se encantaram com a simplicidade da orla menos pomposa. De um lado, viram a chaminé da Usina do Gasômetro e os armazéns do Cais. Viraram o rosto e puderam enxergar os casebres dos ribeirinhos do Arquipélago.
Num lugar tão carente de representação, apesar de receber demandas da vizinhança - e ser a voz dos moradores nos debates envolvendo pleitos da comunidade e em outras audiências públicas -, Bia não se define como uma liderança. Prefere ser chamada de voluntária popular.
— Nem todo mundo me ama, porque eu puxo para que as coisas sejam igualitárias. Eu sei que não vou salvar o mundo, mas o pouco que eu, negra, posso fazer, eu vou. Meus ancestrais passaram por tudo isso e sofreram, e eu quero deixar o melhor — justifica.
A mulher agora representada na obra de arte gigante pede que a cidade não olhe apenas para a pintura: ela recupera a força da voz para cobrar que Porto Alegre enxergue as ilhas nos próximos 250 anos.
— A gente costuma dizer que Porto Alegre sempre fica de costa pra nós. Parabenizamos os 250 anos e pedimos que Porto Alegre agora fique de frente — reforça.
Bia vive em uma casa de madeira distante apenas alguns passos do Rio Jacuí. No mesmo terreno em que mora, a família mantém o Reino de Yemanjá e Oxossi.
No espaço, é oferecido acolhimento físico e espiritual. A peça que abriga pretos velhos, caboclos e outras tantas oferendas também protege os instrumentos musicais da escola de samba Unidos do Pôr do Sol. A mãe de santo toca o tambor do terreiro e também puxa o enredo da agremiação criada para levar alegria ao sofrido povo da ilha.
— O nosso grito de guerra: "te amo, pôr do sol, até morrer" — canta, enquanto sustenta a bandeira. Além de intérprete, Bia é presidente da escola de samba.
A família chegou à região ligada ao continente pela Ponte do Guaíba na metade da década de 1950. A mãe de Bia, Leoni tinha doze anos de idade e foi trazida pelo pai, que trocou Charqueadas, na Região Carbonífera, pelas terras quase inóspitas da Capital. O período é relembrado com tristeza:
— Naquela época me chamavam de “anu”, aquele pássaro preto, sabe? Ou diziam que o corvo tava vindo, o macaco... larguei o colégio de vergonha, pelo racismo — recorda a matriarca.
Leoni tem hoje 78 anos e coordena a ala das baianas na escola de samba. Tem um dom diferente de Bia na unidade territorial tradicional: é a benzedeira da casa.
A paz que se sente ao acessar o imóvel explica por que há tantos nomes e pedidos espalhados pelo congá, espécie de altar com as representações de matriz africana. A ajuda através das entidades se manifestou há 45 anos, segundo Bia.
— Eu tinha 15 anos, e as pessoas me procuravam por doença, por tristeza ou por alguma desavença. Já não era eu, mas as minhas entidades. E aqui aceitamos todos, não importa a religião. Foi o juramento que fiz, fazer o bem sem olhar a quem — garante.
Ensinamentos do povo negro
A mãe de santo não teve acesso ao ensino superior – como boa parte dos negros no Brasil, reitera. Contudo, além de cursos nas mais diversas áreas, teve professores da “história oral do povo negro”, como define os ensinamentos repassados que a formaram como educadora popular.
As experiências são compartilhadas em palestras em universidades, nos debates para os quais é convidada, em oficinas ministradas aos jovens da rede integrada de proteção à criança e adolescente das ilhas ou ainda com as acolhidas pelo Instituto Camélia, organização sem fins lucrativos pela qual ela e outras mulheres empreendem.
— Temos quitandas com produtos orgânicos, da agricultura familiar. Tudo de uma rede de mulheres negras. Mostramos que a periferia pode comer bem, de forma saudável e com preço popular – encerra.